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Capital

Na cidade onde morrem 460 por mês, pandemia ainda não mudou cemitério

Com o coronavírus, a morte passou a ser discussão coletiva, mas até então ninguém se dava conta de quantos são sepultados todo mês

Izabela Sanchez | 10/05/2020 09:41
Abraçada com quem já se foi (Foto: Marcos Maluf)
Abraçada com quem já se foi (Foto: Marcos Maluf)

É de tempo e paciência que é feita a rotina da casa de mortos mais antiga de Campo Grande. Fundado oficialmente em 1914 na Avenida da Consolação, o Cemitério Santo Antônio não é, acredite ou não, um lugar mórbido e quem passa o dia ali não precisa ser consolado.

Na cidade onde todos os meses, em média, 460 morrem e 440 são sepultados, o cemitério mais antigo é colorido. Além disso, todos os mortos já são esperados: no Santo Antônio não se abrem novos terrenos para jazigos e quem é enterrado já havia reservado seu espaço.

A morte é garantia de quem nasce, mas nunca se falou tanto dela nos últimos anos, como se fala agora. Isso porque instalou-se de uma hora para outra pandemia do novo coronavírus e, diariamente, a morte que era pouco contabilizada e sequer divulgada se tornou boletim público. Todos os dias estamos contando mortos, seja na cidade, no estado, no Brasil ou no mundo.Foi dessa forma que um assunto quase sempre particular ganhou o imaginário coletivo e o medo de quem teme deixar de viver ou perder quem ama para doença.

Entretanto, na Capital que ainda pode ser chamada de privilegiada pelos números baixos de covid-19, as máscaras e a redução de visitas parecem ser as únicas mudanças na rotina de quem trabalha nos cemitérios.

Parte da estrutura precária e antiga do Cemitério Santo Antônio (Foto: Marcos Maluf)
Parte da estrutura precária e antiga do Cemitério Santo Antônio (Foto: Marcos Maluf)

A morte até diminuiu – É bem contraditório, também, que seja justamente a pandemia a possível responsável por diminuir o número de mortes. Dados da Sesau (Secretaria Municipal de Saúde) indicam que enquanto em 2019 a média de mortos em Campo Grande, mensalmente, era de 460, nos primeiros meses de 2020 a média é de 430. Ao menos por enquanto, e ainda que não tenha “lockdown”, o pedido de “ficar em casa” pouco atendido pela população está causando efeito. Dentro de casa, menos riscos, menos acidentes, e a consequência parece ser de menos mortes.

O número médio de sepultados na Capital ao mês, nos últimos 12 meses até janeiro deste ano, é ainda menor: 440, informou a Agereg (Agência Municipal de Regulação dos Serviços Públicos). O número chega até a Agência pelas 15 funerárias licitadas em Campo Grande e o levantamento foi pedido da Prefeitura para ter um comparativo de antes e depois da pandemia.

A média de mortos é maior porque nem todo mundo que morre em Campo Grande é enterrado por aqui. Volta para onde veio.

“Esse número de 440 não são nem de mortos, são os sepultados, essa é a média. Campo Grande acaba sendo o centro de saúde para o estado. Quando tem casos mais complicados e ocorre da pessoa falecer, não é sepultada aqui, então o número de óbitos é maior”, comenta o diretor presidente da Agereg, Vinícius Leite Campos.

Segundo Vinicius, a Prefeitura começou recentemente a organizar o levantamento porque nas administrações anteriores não havia sequer serviço licitado para as funerárias.

“Eu pedi quando começou a crise da covid para ter uma média de como seria essa pandemia aqui em Campo Grande. O ano que vem vamos ver a média desse ano. Se houve aumento de sepultamento com causa mortis de problema respiratório pode ser de covid subnotificado”, comenta.

Em fevereiro deste ano foram 374 sepultados segundo a Agereg e em março o número voltou à média de 2019, com 439 pessoas sepultadas em Campo Grande.

Jesus Cristo, nesta escultura, parece abençoar quem repousa ali (Foto: Marcos Maluf)
Jesus Cristo, nesta escultura, parece abençoar quem repousa ali (Foto: Marcos Maluf)

Quem cuida dos mortos – O cemitério Santo Antônio foi o destino final de muitas estrelas regionais. Os notórios como José Antônio Pereira, considerado o fundador pioneiro da cidade, está logo na entrada em um túmulo grande, com decoração dourada. Era ali que sentavam em tranquilidade coveiro e pedreiro, trabalhadores que passam o dia no cemitério.

Eles não são autorizados a falarem pelo cemitério e o administrador já havia saído para o almoço, mas a simpatia dos dois não impede um bate papo. O coveiro já trabalha no Santo Antônio há 19 anos e o pedreiro, há menos de 3, conta com riso e leveza que “caiu numa armadilha” sem saber. Ele tem 35 anos e antes de exumar corpos e selar túmulos, construída casas.

De uma certa forma, conforme vai contando com respeito por quem descansa ali, ele ainda constrói, ainda que as casas sejam moradia dos mortos. A surpresa foi que ele mal sabia que tipo de trabalho iria realizar. Foi curiosidade que o levou a se candidatar à vaga, mas o choque e o medo ocuparam os pensamentos até que a morte fosse apenas rotina de trabalho.

“Eu achava que ia construir muros, reparar muros e túmulos”, vai contando. “E cheguei, nossa, dois no mesmo dia para enterrar de uma vez”, conta. Pesadelo não teve, mas foi difícil dormir por algum tempo. Medo ele também não sente mais, e o esquisito, conta, é ver as caveiras.

Há jazigos de todos os tipos no Santo Antônio (Foto: Silas Lima)
Há jazigos de todos os tipos no Santo Antônio (Foto: Silas Lima)

O companheirismo da cena vista pela reportagem na manhã desta sexta-feira (8) parece ser parte da rotina dos colegas de trabalho. O coveiro de 55 anos precisa de ajuda nos trabalhos que envolvem exumar, cavar, enterrar. No bate papo informal o pedreiro conta que o trabalho é tranquilo e que o mais difícil é cavar. “Demora três dias”, conta.

Construir um jazigo de três gavetas leva três semanas, vai dizendo. O colorido e atemporal cemitério abriga gente que nasceu no século XIX e tem desde túmulos muito simples, direto no chão e sem cimento, até grandes construções arquitetônicas de estilo gótico, clássico e moderno, de famílias que ocupam também nomes de ruas e avenidas em Campo Grande. “Capela ninguém pede mais, demoraria mais de um mês”, comenta pedreiro.

Eles conhecem todo mundo por ali. E apesar da morte ser rotina, a sensibilidade ainda vive dentro dos dois trabalhadores. “Estranho não é”, pensa o coveiro, sobre a pandemia que ainda não chegou no Santo Antônio.

“Eu só fico sentido de enterrar bebezinho, isso não acostumo não. São mais as mães que visitam”, comenta.

Escultura caída, de Cristo, em jazigo no Santo Antônio (Foto: Marcos Maluf)
Escultura caída, de Cristo, em jazigo no Santo Antônio (Foto: Marcos Maluf)

A conversa chega até a estranheza que é um pai enterrar um filho, e não o contrário, e por fim, não há o que fazer sobre o fim de tudo. “Fazer o que, né”, suspira ele, enquanto tira um cigarro do maço que estava no bolso. É quase hora do almoço.

Difícil é despedir-se de quem eles viam sempre visitando entes queridos ali. Este é outro ponto sensível. O coveiro que já trabalha há 19 anos fez amigos entre quem ia religiosamente visitar familiares enterrados. A estranheza ocorre quando essas mães, pais, avós, irmãos, morrem também. E aí vão, essas pessoas, repousar ao lado daqueles que visitavam.

Ele vai lembrando das histórias.

“As vezes a gente fica sentido”, recorda.

O enterro mais simples, no chão (Foto: Marcos Maluf)
O enterro mais simples, no chão (Foto: Marcos Maluf)

Uma dessas memórias parece até roteiro de filme. É a história trágica de um homem que ele sempre no cemitério e segundo o coveiro, perdeu a primeira esposa em acidente de carro e então casou de novo. Anos depois, a segunda esposa também faleceu da mesma forma que a primeira e como se não fosse tristeza suficiente, a filha também morreu em acidente de trânsito. Um dia, conta o coveiro, ele também morreu de acidente de trânsito. “Já deve ter uns 10 anos”, lembra.

Uma profissão que para a maioria das pessoas é tão esquisita e também tão escondida, de repente vira fonte de notícias. O coveiro vive no Aero Rancho e conta que a vizinhança já fica perguntando sobre mortos da pandemia porque não sabe que no cemitério já não se abre mais espaço para novos terrenos.

Outros companheiros dos trabalhadores são os gatos que passeiam ou moram ali. Nesta sexta, curiosamente, os únicos que estavam no Santo Antônio eram os animais considerados símbolos de mau agouro. Dois gatos pretos. Um deles subiu na árvore e ficou no alto de um galho, miando sem parar.

“Esse gato é igual macaco, ele sempre sobe na árvore”, conta.

O último enterrado respousa ali, mas a placa não é dele (Foto: Marcos Maluf)
O último enterrado respousa ali, mas a placa não é dele (Foto: Marcos Maluf)

Dois corpos ocupam o mesmo espaço – Foi o matemático britânico Isaac Newton (1643-1727) o autor de uma das leis mais famosas da Física: “dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo”. Mas os cemitérios quebram as leis da física, ou quase isso.

A última pessoa a ser enterrada no Santo Antônio foi colocada no jazigo localizado na última fileira do cemitério, uma das mais antigas, na segunda-feira (4). Ainda não tem placa de identificação e divide a mesma estrutura com um idoso que faleceu em 2014 e é a placa dele que está no túmulo. Exumado, o corpo do idoso, seus ossos, ficam armazenados no espaço ao lado do túmulo dentro do mesmo jazigo.

No fim, a cultura que decidiu que os mortos são enterrados debaixo da terra parece só trocar os corpos dos vivos de casa. Ao menos no Santo Antônio, na última rua, o endereço dos dois agora é a Quadra P, lote 13.

Há também quem ainda espere visitantes, mesmo nessa época em que o melhor é ficar em casa. Gerval de Oliveira, 58, faz o mesmo “bico” há 29 anos: vende rosas no dia das mães, dos pais e de finados. Ele acredita que Campo Grande está protegida. “Campo Grande é abençoada”, diz, enquanto oferece, de graça, uma rosa.

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