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Cidades

Edemar, 4, mora no hospital para fugir de cultura que poderia matá-lo

Natalia Yahn | 21/01/2016 09:53
Edemar tem 4 anos, mora no hospital, mas não deixa de sorrir e brincar. (Foto: Marcos Ermínio)
Edemar tem 4 anos, mora no hospital, mas não deixa de sorrir e brincar. (Foto: Marcos Ermínio)

“Eu tenho cardiopatia. Tomo dipirona e digoxina”. A resposta do menino indígena Edemar Gonçalves da Silva, 4 anos, é rápida quando perguntado sobre a doença e os remédios que precisa tomar. Ele nem precisava estar no hospital, mas vive há pelo menos um ano em hospitais de Mato Grosso do Sul por uma questão cultural: os médicos temem que a família não permita que ele volte para concluir o tratamento e fazer uma cirurgia.

Edemar está atualmente na Santa Casa de Campo Grande, onde chegou no fim de outubro do ano passado. Tem um grave problema no coração, conhecido como anomalia de Ebstein. Nasceu com a doença rara, que provoca insuficiência cardíaca por conta de uma má formação.

O problema no coração não impede que a criança viva fora do hospital, ele poderia aguardar a cirurgia em casa. Porém, a “internação social” na Santa Casa é o único meio encontrado para garantir que ele receba o tratamento necessário.

“Ele corre risco de morte. É preciso manter ele no hospital pela questão cultural, pois, como é indígena, pode não voltar para o tratamento. Antes de fazer a cirurgia cardíaca ele precisa passar por um procedimento. Ambos são cobertos pelo SUS (Sistema Único de Saúde), mas que não fornece todos os materiais. Solicitamos judicialmente e estamos aguardando”, afirma a cardiopediatra que atende o menino, Cláudia Piovesan Farias.

A questão cultural, historicamente, é uma preocupação por conta do descarte das crianças indígenas que nasciam com alguma deficiência. O doutor em antropologia e professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Antônio Hilário Aguilera Urquiza, afirma que esta prática não é mais comum nas aldeias do estado, mas já aconteceu.

“Hoje em dia é muito raro o descarte das crianças que nascem com algum defeito físico. Os indígenas acreditam que a criança que nasce assim é devido a uma maldição divina e atrapalha o grupo. Para nós é absurdo, para eles não. Mas, hoje existem políticas do governo para monitorar as gestantes e impedir esta prática”.

No caso de Edemar ele acredita que manter a “internação social” é justificável. “Essa criança poderia ser até usada como moeda de troca, por conta da instabilidade familiar e do crime (o pai assassinou a mãe de Edemar) que aconteceu. Outra pessoa, para se vingar poderia querer fazer mal para ele dentro da aldeia. Depois da cirurgia será necessário o acompanhamento da Funai (Fundação Nacional do Índio) para que ele volte ao lar em segurança”, afirmou Urquiza.

A assistente social Sidnéia Paulino (com Edemar no colo), diz que toda a equipe "mima" o garotinho. A irmã Jaqueline (ao lado) deixou a aldeia para ficar no hospital. (Foto: Marcos Ermínio)
A assistente social Sidnéia Paulino (com Edemar no colo), diz que toda a equipe "mima" o garotinho. A irmã Jaqueline (ao lado) deixou a aldeia para ficar no hospital. (Foto: Marcos Ermínio)

Edemar recebeu o diagnóstico da doença também na Santa Casa de Campo Grande, logo após o nascimento. Na época, os pais foram informados sobre a gravidade do caso, mas não permitiram que o filho fosse submetido aos procedimentos que poderiam salvar sua vida.

“O hospital chegou a receber todo o material necessário para o procedimento e a cirurgia, que foi devolvido porque a família não autorizou. E agora estamos aguardando os mesmos itens, tudo de novo”, disse a médica.

O menino retornou para a Santa Casa no dia 28 de outubro de 2015, após ser transferido do HU (Hospital Universitário) de Dourados, a 230 quilômetros da Capital, onde estava internado desde dezembro de 2014.

“A situação é complicada, ele não recebeu nenhum tipo de acompanhamento ou tratamento nos anos anteriores. Só deve ter ido para o hospital porque começou a apresentar os sintomas da doença como falta de ar e até ficar roxo. Se ele tivesse feito a cirurgia na época a situação hoje seria outra”, explicou Cláudia Farias.

Vida no hospital - O quarto do menino mostra que o hospital já é sua casa. Lá tem brinquedos, mimos e televisão para assistir ao desenho favorito. Mas, quando perguntando onde mora, ele afirma que "é no HU”.

A assistente social Sidnéia Paulino explica que ele está acostumado com o ambiente hospitalar, e realmente pensa que o HU é sua casa. “Ele não lembra de outro lar. E agora aqui é aonde ele vive. A equipe toda se envolveu. Damos amor, carinho, atenção e ele retribui da mesma forma”.

O defeito congênito no coração não impede que Edemar brinque nos corredores da pediatria da Santa Casa. Entre os profissionais que atuam no setor ele já adotou mãe, avó, tias e madrinhas. “Aqui ele já arrumou avó, tia. Ele é um menino muito querido e quem o conhece já se apega, traz presentes, brinquedos”, explicou Sidnéia.

Cíntia Fernandes é a "mãe" de Edemar na Santa Casa. Ela corrige, cuida e se preocupa com ele. (Foto: Marcos Ermínio)
Cíntia Fernandes é a "mãe" de Edemar na Santa Casa. Ela corrige, cuida e se preocupa com ele. (Foto: Marcos Ermínio)

Ele é acompanhado por uma irmã, Jaqueline Lopes, 23 anos, que deixou a Aldeia Bororó, em Dourados, para ficar ao lado de Edemar na Santa Casa. Mas, para ela viver no hospital é difícil. “Eu não gosto, queria ir embora”, afirmou.

Jaqueline cuida do irmão no local há dois meses, antes disso um dos irmãos da mãe de Edemar era responsável por ele. “A situação familiar é bem complicada. Com a morte da mãe quem cuidava dele era o tio, mas o indígena não consegue ficar como acompanhante, é cultural”, disse a assistente social.

A técnica em enfermagem Cíntia Fernandes, 28 anos, é chamada de “mãe Cíntia” por Edemar. Ela já tem uma filha, de 11 anos, mas faz jus ao parentesco escolhido por ele. “Eu chamo atenção quando precisa, falo que ele vai ficar no quarto pensando no que fez ou sem os brinquedos. Ele é danado, tem dias que não quer nada, remédio, banho e comida. A gente tem que cuidar e educar, como se fosse filho mesmo”, afirmou.

A equipe médica e de enfermagem se desdobra para dar uma boa qualidade de vida para o “indiozinho”, como Edemar é chamado carinhosamente, mas os procedimentos que ele precisa fazer já preocupam. “Eu não sei como vai ser quando ele for para o centro cirúrgico. Vamos ficar apreensivos querendo saber se vai dar tudo certo”, diz “mãe” Cíntia.

A SES (Secretaria de Estado de Saúde) informou que a cirurgia de Edemar deverá acontecer dentro de uma semana.

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