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Cidades

Ruas estão cheias de 'Kauans', vítimas das omissões nossas de cada dia

Análise é de quem lida diariamente com o sistema que deveria dar segurança para meninos e meninas

Anahi Zurutuza e Adriano Fernandes | 26/07/2017 09:57
Meninos jogam bola em terreno no Jardim das Hotêrsias, cena comum numa tarde qualquer em um dos bairros da periferia da cidade (Foto: Marcos Ermínio)
Meninos jogam bola em terreno no Jardim das Hotêrsias, cena comum numa tarde qualquer em um dos bairros da periferia da cidade (Foto: Marcos Ermínio)

Não dá para apontar o dedo para um ou para outro e dizer quem falhou. Kauan Andrade Soares dos Santos viveu por nove anos uma sucessão de omissões até que caiu nas mãos erradas e pagou com a vida, uma tragédia, a pior das consequências sem dúvida. A análise é de quem está diante de “Kauans”, todos os dias.

Basta uma ida a um dos bairros mais periféricos de Campo Grande, numa tarde qualquer, para encontrar alguns deles, jogando bola ou “caçando pipas”, como fazia o menino do bairro Aero Rancho, que foi assassinado, conforme indica a investigação da Polícia Civil, no dia que saiu para a última de suas “caçadas”.

A rua vira campo aberto para criatividade, o lazer na base do improviso dos pequenos ignora não só a tecnologia, mas também ao risco.

No Jardim das Hortênsias – na zona sul da cidade, a mesma região onde Kauan morava –, o terreno de chão batido entre as ruas Genebra e Arquiteto Vila Nova Artigas é o concorrido campo para a bola no pé ou a pipa na mão.

Menino empina pipa em bairro do sul da Capital (Foto: Marcos Ermínio)
Menino empina pipa em bairro do sul da Capital (Foto: Marcos Ermínio)
Crianças descalças e sozinhas na rua (Foto: Marcos Ermínio)
Crianças descalças e sozinhas na rua (Foto: Marcos Ermínio)

Um dos meninos, de 11 anos, conta que para encontrá-lo é só ir até o campinho. “Quase todo dia a gente vem aqui. Putz... me aparou!”, se queixa ao perder a pipa cortada pela linha com cerol de um adversário.

Mais para frente, no Portal Caiobá – sudoeste da Capital –, a rua é que virou pista. “Tá viajando em tio. Vou te bater com meu carrinho”, diz uma das crianças, querendo parecer bravo, mas sem conseguir evitar um sorriso para a câmera do fotógrafo.

Análise – O problema, segundo os integrantes da rede de proteção à criança e ao adolescente, não é estes meninos e meninas brincarem na rua, o problema é a falta de supervisão e orientação, que os expõe a inúmeros riscos. Um deles é dar de cara com um pedófilo.

Ainda de acordo com os especialistas que conversaram com a reportagem, mais grave é quando estes meninos e meninas estão na rua catando latinhas ou cobrando para “cuidar” de carros.

“Eu queria viver para ver a sociedade se importar. Ninguém pode ver uma criança cuidando de carro na rua e achar que é normal, só porque é uma situação que a gente vê todos os dias”, afirma AngeloMotti, psicólogo especialista em psicologia social, pró-reitor de Gestão de Pessoas da UFMS(Universidade Federal de Mato Grosso Sul) e coordenador da Escola de Conselhos, que capacita conselheiros tutelares.

Prova de que a situação é mais do que comum, foi a ligação que o Campo Grande News recebeu dias atrás. Um pai reclamava de foto que foi publicada no dia 18 de julho, porque o filho aparecia em uma das vagas envolta de uma fogueira, numa das favelas da cidade. A divulgação da imagem trouxe “problemas” para ele, conforme disse ao telefone, porque a assistente social que acompanha a família, o procurou.

Crianças tentam espantar o frio ao redor de uma fogueira (Fotos: André Bittar/Arquivo)
Crianças tentam espantar o frio ao redor de uma fogueira (Fotos: André Bittar/Arquivo)

Motti usa a frase para resumir como o sistema de proteção à criança e ao adolescente é frágil. “O ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] diz que é dever da família criar, educar e proteger, mas nem sempre a família tem consciência ou condição de por em prática isso”.

O psicólogo continua afirmando que não há como negar que a mãe e o padrasto negligenciaram os cuidados com Kauan e talvez com os irmãos, mas é justamente neste ponto que a falha no dever do Estado é escancarada. “Kauan também foi vítima da fragilidade dos serviços públicos”, afirma, explicando que o acesso à escola, inclusive no contraturno, à saúde e outras assistências.

Mas, para AngeloMotti, a pior das omissões é a da sociedade, que tem a cultura de não “se meter” na vida do outro e ignora, muitas vezes até incentiva sem perceber, violações aos direitos das crianças e adolescentes, direitos humanos. “Assusta constatar que a comunidade, os vizinhos verem o movimento de crianças e adolescentes na casa de um adulto e acharem que é normal, não fazerem nada”.

Às vezes, é melhor pecar pelo excesso.

Neste ponto, o juiz Roberto Ferreira Filho, que foi titular de uma das varas da Infância e Juventude de Campo Grande e presidente do Fonajuv (Fórum Nacional da Justiça Juvenil), concorda com Motti.

“As pessoas não se sensibilizam por estas violações do dia a dia e sem nenhum tipo de proteção, além da violação do dia adia, esta criança acaba vítima violência. A rua é atrativa, não tem regras, mas o abandono [falta de supervisão] leva que a violação seja cada vez mais intensa”.

Katy Braun e Angelo Motti durante abertura de curso para conselheiros tutelares nesta segunda-feira (Foto: Escola de Conselhos/Divulgação)
Katy Braun e Angelo Motti durante abertura de curso para conselheiros tutelares nesta segunda-feira (Foto: Escola de Conselhos/Divulgação)

Sem julgamentos – Janete dos Santos Andrade, 35, a mãe de Kauan virou alvo dos que apontam dedos, principalmente na redes sociais, desde que a polícia revelou que o menino havia sido morto e que teria sido abordado pelo assassino a 3 km de casa, no bairro Coophavilla 2.

Mas, a KatyBraun, juíza que responde hoje pela Coordenadoria da Infância e da Juventude do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), alerta: “esta é a realidade de milhares de crianças pobres”.

“As crianças de famílias com melhores condições financeiras estão sempre sob os olhos de alguém, escola, cuidadores, parentes. Pai, quando presente, e mãe pobre têm de trabalhar e nós vivemos numa cidade onde faltam 7 mil vagas em creches”.

O colega da magistrada completa: “é preciso que uma criança morra para que tudo isso chame a atenção”.

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