Povos originários semeiam esperança no Pantanal
Há dois anos um viveiro de mudas tem cultivado perspectiva de um futuro melhor, no combate à seca de nascentes
Dar o exemplo é a melhor forma de educar. Nesta terça-feira, 22 de março, em que se celebra o Dia Mundial da Água, compartilhamos o trabalho de recuperação de nascentes promovidos pelos indígenas da etnia Kadiwéu, no município de Porto Murtinho, para pontuar que apesar dos problemas ambientais enfrentados no Pantanal sempre é tempo de agir em benefício das áreas úmidas.
Em 2020, indígenas do Território Indígena (TI) Kadiwéu decidiram arregaçar as mangas e abraçar o projeto de construção de um viveiro com o apoio do Programa Corredor Azul (PCA), da Wetlands International Brasil e da Mupan (Mulheres em Ação no Pantanal).
O trabalho tem por objetivo recuperar áreas de nascentes que fornecem água às famílias indígenas, como é o caso do Córrego Campina e do Rio Aquidaban. Ambos estão apresentando acentuada seca, em determinadas épocas do ano, o que tem gerado preocupação dos moradores que dependem da água para sua subsistência.
E foi em meio a esse complexo cenário que surgiu a ideia de construir o viveiro. Um modo de semear a esperança onde a escassez d’água tem se espalhado como uma erva daninha. “O viveiro tem 1.200 m², com capacidade de gerar diversas espécies de mudas nativas do Pantanal. No final de 2021, passamos por uma capacitação e, agora, vem o planejamento do plantio de mudas nas cabeceiras das nascentes para devolver a natureza aquilo que ela perdeu”, enfatiza o presidente da Abink - Associação dos Brigadistas Indígenas da Nação Kadiwéu, Mesaque Rocha.
“De 2017 para cá, uma das grandes fontes de problema se concentra no desmatamento na borda do rio Aquidaban, que está fora da reserva indígena, mas que corta a aldeia, e no agrotóxico usado em lavouras próximas que caem no rio quando vem a chuva. Em razão disso, o problema passou de sério para gravíssimo. Se antes baixava o volume do rio, hoje, o rio se encontra seco”, explica Elísio Veiga, que é vice-cacique da aldeia São João.
Considerada a maior reserva indígena do Pantanal, o Território Indígena Kadiwéu possui 538 mil hectares e aproximadamente 1.200 moradores nas aldeias Alves de Barros, São João, Campina, Barro Preto, Córrego do Ouro e Tomazia. Um território que luta para se recuperar da tragédia de 2020, que comprometeu 45,9% de sua extensão, ou seja, 247,3 mil hectares consumidos pelo fogo.
“A escassez de água não é um problema só nosso. Temos consciência que a crise hídrica é uma questão global, mas, a gente acredita que a melhor alternativa no momento é a partir do reflorestamento dentro e fora do nosso território”, afirma Elísio, que complementa, “A gente acredita no diálogo, ou seja, pedir uma licença aos produtores para entrar nas propriedades a fim de reflorestar o entorno das nascentes”.
E apesar do longo percurso para sanar os problemas, os indígenas estão indo ao socorro do Pantanal de modo prático, fazendo germinar a esperança de conservação do bioma. Um trabalho que serve de exemplo a todos nós, considerando que há uma falsa ideia de que o recurso hídrico é infinito. Isso porque ao promover o plantio de mudas de espécies nativas em áreas de nascentes, olhos d’água, ou áreas úmidas, por exemplo, a vegetação tem um papel fundamental na preservação da qualidade da água pois, pode conter erosões, e ajudar a manter a temperatura local, entre outros benefícios.
Afinal, apenas 0,5% de toda água do nosso planeta se enquadra dentro da classificação de água doce. Adicione a isso o fato que há instalada uma crise hídrica mundial e que apesar do Brasil ser detentor de grande parte da água doce do globo, aqui, enfrentamos a terceira
crise hídrica em 20 anos. Ela é a maior crise já registrada no país em 91 anos, por causa, principalmente, da má gestão do recurso natural.
Situação que reforça que o problema não se restringe ao povo Kadiwéu. E que denotam que as lideranças políticas precisam tratar a água como uma prioridade de segurança nacional. Afinal, por mais que iniciativas como o viveiro sejam essenciais e atuem no local, é primordial a formulação de políticas públicas de proteção às cabeceiras dos rios e de fomento às práticas sustentáveis de produção no meio rural e urbano.
Se por um lado, o viveiro é um indicativo de caminho para cuidar dos recursos hídricos, deixar as comunidades a missão de salvaguardar sozinhas os biomas não é a melhor solução. Um estudo sobre a perda de água potável durante a distribuição à população, publicado pelo Instituto Trata Brasil, em 2021, revelou que são desperdiçadas diariamente 7,5 mil piscinas olímpicas de água tratada, ou sete vezes o volume do Sistema Cantareira – maior conjunto de reservatórios para abastecimento do estado de São Paulo. Essa quantidade de água potável desperdiçada seria suficiente para abastecer mais de 63 milhões de brasileiros em um ano.
Não à toa que mais de 90 pesquisadores brasileiros de renome deram apoio ao artigo “O Brasil está em crise hídrica - é necessário um plano de seca”, [1] publicado na revista Nature, no ano passado. O texto alerta que se o país não investir em pesquisa, monitoramento do
solo e em novas fontes de energia renováveis, futuras crises hídricas irão encarecer ainda mais o valor da energia e poderão comprometer a segurança alimentar do país e do mundo.
Daí a importância de reverter o quadro acima através de medidas que vão desde a criação de políticas públicas voltadas às questões hídricas até aos incentivos a trabalhos desenvolvidos por comunidades tradicionais, como é o caso da iniciativa encabeçada pela etnia Kadiwéu a favor da água.