“Homem de bem com uma arma” virou fantasia mortal
Essa ideia do “homem de bem com uma arma” virou o principal argumento dos ativistas dos direitos às armas. De onde veio? Não há nenhuma marca brasileira nessa pauta. Ela é totalmente norte americana.
Em 21 de dezembro de 2012 – uma semana depois de um assassino ter matado 26 pessoas em uma escola primária em Newtown, Connecticut –, o vice-presidente da Associação Nacional de Rifles, Wayne LaPierre, afirmou em uma coletiva à imprensa que “a única maneira de impedir um bandido é um bom sujeito com uma arma”.
Desde então, em resposta a cada tiroteio, analistas pró-armas, políticos e usuários de mídias sociais repetem alguma versão desse slogan, seguidos para armar professores, fiéis de alguma igreja e a todos que sejam “homens de bem”. E sempre que um cidadão armado derruba criminosos, glorificaram o “heroísmo”. Mas o arquétipo do “cara bom armado” data de muito antes da coletiva de LaPierre.
Tudo começou com a ficção policial norte americana
Há uma razão que tornou a coletiva de LaPierre uma força desmesurada. Ela ressoou profundamente devido à ficção policial. Vários países têm sua ficção policial. Mas foi nos Estados Unidos que o “cara legal com uma arma” se tornou uma figura heroica e uma fantasia cultural.
A partir da década de 1920, um certo tipo de protagonista começou a aparecer na ficção policial norte-americana. Ele usava um sobretudo e fumava cigarros. Não falava muito. Era honrado, individualista –e armado. Esse tipo de personagem foi apelidado de “hard-boiled” (algo como “cozido e duro”). O termo teve origem no final do século XIX para descrever “homens perspicazes, que não pediam e nem esperavam simpatia”. Descrevia alguém que era muito duro e tinha um jeito bem definido de se comportar.
Three Gun Terry, de Carol J.Daly, o livro precursor da ideia do “homem de bem com uma arma”
A maioria dos eruditos credita a Carol John Daly a criação da primeira história de detetive hard-boiled. Sua ficção, intitulada “Three Gun Terry”, foi publicada na revista “Black Mask”, em maio de 1923. Terry deixa o leitor saber que ele é um tiro certeiro: “Quando eu disparo, não há concurso de adivinhação para onde a bala está indo”.
Terry também defende seus defensores “de bem”: “Mostre-me o homem, se ele está me apoiando e é um homem que realmente precisa do adversário ser morto, ora, eu sou o homem que faz isso”.
Desde o início desse tipo de ficção, a arma era um acessório crucial. Como Terry, um detetive, só atirava em bandidos, e nunca errava, não havia nada a temer.
A era de Terry é semelhante ao século XXI
Parte da popularidade desse tipo de personagem tinha a ver com seu tempo. Na era que o puritanismo procurava proibir tudo (até mesmo as bebidas alcoólicas), em que o crime organizado invadia as ruas, em que a corrupção governamental havia ultrapassado o nível do aceitável e a extrema direita (que glorificava Mussolini) procurava respostas a todos os males que afloravam nos EUA, o público foi atraído pela ideia de um dissidente bem armado e bem intencionado. Alguém que pudesse vir, heroicamente, em defesa das pessoas comuns. Ao longo dos anos 1920 e 1930, as histórias que tinham esse tipo de personagem se tornaram muito populares.
Os titãs Dashiell Hammett e Raymond Chandler
Pegando o bastão de Carol J.Daly, autores como Dashiell Hammett e Raymond Chandler se tornaram titãs do gênero não só nos EUA, mas também no Brasil, onde a realidade era muito diferente. Os personagens eram sempre os mesmos: detetives particulares (a polícia era corrupta) de fala dura e de tiro certo.
Em uma artigo de 1945, Raymond Chandler tentou definir esse tipo de protagonista: “Por essas ruas malvadas, um homem deve ir, um homem que não é malvado, nem manchado, nem amedrontado... Ele deve ser, para usar uma frase bastante desgastada, um homem de honra...”.
Os filmes transformaram esse personagem nos preferidos do público
À medida que os filmes se tornaram mais populares, o arquétipo do “homem de bem armado” tomou conta da tela prateada. Humphrey Bogart, o mais famoso ator da época, interpretou Sam Spade, um personagem de Dashiell Hammett, com grande aclamação. No final do século XX, o cara corajoso, de bem e armado já era o maior herói cultural. Estava presente em revistas, jornais, cinema, televisão e videogames.
O problema com esse arquétipo é que ele é apenas isso: um arquétipo. Uma fantasia. Uma ficção. Na ficção, os detetives nunca falham. Sempre são inocentes. Raramente são mentalmente instáveis, em uma profissão onde a instabilidade emocional, decorrente do perigo diário a ser enfrentado, é comum.
Na ficção, eles nunca sentem raiva. Quando esse tipo de detetive entra em choque com a polícia é porque estão fazendo o trabalho da polícia melhor do que a polícia consegue. Mas há uma característica do “homem de bem armado” que não pode ser esquecida: ele é branco.