"M", o filho do século. Mussolini voltou?
Uma pequena burguesia sem consciência de classe, assustada pela percepção de uma invasão estrangeira. Um partido que invoca a antipolítica. Um povo receoso da atividade do parlamento. Um clima de decomposição e crise econômica. Muito barulho: de armas e da propaganda. E, no final das escadas do palácio do Quirinal, um homem forte com uma lista de ministros barulhentos em baixo do braço. Um século depois, a Itália olha para trás em busca de algumas respostas. Renasce uma certa fascinação por Benito Mussolini nas livrarias, no cinema e na televisão. Um fenômeno cultural que coincide com o ressurgimento dos partidos fascistas. Um clima que muitos percebem o mesmo aroma da cozinha de 1919 a 1921. O prato servido pelos fascistas que chegaram a proibir a macarronada em solo italiano. O regresso que pode ser medido pelo estouro nas livrarias de vendagem de "M", o filho do século.
"M il figlio del secolo", a novela que contará os tempos do fascismo.
Essa monumental obra de Antonio Scurati tomou de assalto as livrarias da Itália há quatro meses. O tomo inicial - serão três - conta com 839 paginas sobre uma figura que ninguém apostaria converter-se em sucesso literário. Não havia mistérios a serem resolvidos, nada augurava a euforia comercial. Mas seu autor tinha claro a chave para essa obra que já está sendo traduzida para vinte idiomas: "ninguém havia ousado narrar a conquista do poder por Mussolini sem juízos pré-estalecidos, um tabu impedia de fazê-lo. Se cumpria quase cem anos da fundação do fascismo e era justo que se contasse [esse tempo] com liberdade e sem juízos pré-estabelecidos. Sempre havia sido um relato com juízos anti-fascistas. A condenação como mal absoluto vinha antes de qualquer discurso. Primeiro tinha de declarar-se anti-fascista. E isso era necessário: a República italiana se funda sobre isso. Mas o novo anti-fascismo, o novo relato formador de uma consciência democrática não pode basear-se um juízo ideológico pré-estabelecido. Deve ser equidistante, como faz a arte e a literatura", afirma Scurati. Essa é uma mensagem que os autores brasileiros nunca aprenderam. Nossa história próxima está distante de ser escrita. Apenas um exemplo basta: quem foi o verdadeiro coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra? Não há uma só obra sem um profundo viés ideológico assentado em suas bases. Em claro português só há uma resposta: muito xingamento e defesas rasas. Não há história. Só há propaganda, panfletos.
Cinco anos de estudos para um relato trepidante.
O autor estudou durante cinco anos aquele período e construiu um relato trepidante sobre a ascensão ao poder de um ex-socialista corroído pelo ressentimento e com a única arma que dispunha: um jornal (IlPopolo D'Italia). Logo, passou apontar com esquadrões para- militares que dominaram um povo desnorteado. Todos os pensamentos e reflexões do jovem Mussolini estão claros em seus discursos, artigos e conversas estudadas pelo autor. O relato é ligeiro, está baseado com detalhes minúsculos perdidos em muitos livros e textos acadêmicos perdidos no tempo. Assim se constrói um monumento literário. E melhor, conta com o formato popular das novelas, fáceis de ler por qualquer pessoa. Muito trabalho se exige para contar uma boa história. Não é daquelas histórias escritas por acadêmicos para acadêmicos. A chatice, vicio da maioria dos historiadores brasileiros, não aparece em um só parágrafo.
O sucesso de Scurati.
Paolo Mieli, ex-diretor do jornal "Il Corriere della Sera", aponta três motivos para o sucesso de "M": "Primeiro, as coincidências de algumas coisas que hoje acontecem e na época que precedia a aparição de Mussolini: desordem, desorientação e medo. Se tem a impressão que [o livro] nos ajudará a entender o momento atual. Além do mais, Mussolini e Hitler sempre foram descritos como fenômenos horríveis, mas nunca lograram entender como o consenso pode ser tão alto, até mesmo internacionalmente. O terceiro elemento dessa obra volumosa é que foi escrita como uma novela que permite aproximar-das partes mais secretas e complexas de maneira compreensível". A verdade é que até a chegada de "M" os,livros acessíveis eram superficiais, e os completos eram de difícil leitura. Livro crucial para entender o fascismo. Tanto para aqueles que admiram como para os que odeiam.