Escravidão: manual para castigar e ampliar reprodução
Hipocrisia. O mandonismo brasileiro sempre esteve eivado pela hipocrisia. O povo costumava cumprimentar o mandão do momento com reverência, mas também chamava-o por apelido ou por diminutivo do primeiro nome do manda-chuva. Ou seja o uso de alguma forma de "intimidade" apenas servia para sublinhar o poder descomunal do mandão. Em verdade apenas servia para disfarçar a real distância social. Os mandões eram chamados de "sinhô", "nhonhô" e "ioiô" ou de "Senhor Fulaninho". Mas eles jamais abriram mão da distância dos sem poder. E todos eram educados para atender a uma educação baseada em manuais. Modelos de como se comportar.
Pequenos livros que moldaram o mandonismo brasileiro. Quando parir era bonificado.
Durante todo o período colonial e imperial - aquele em que os reis portugueses ficaram com todo o dinheiro e riqueza brasileira - foram criados e difundidos uma série de "manuais". Ofereciam aos mandões sugestões sobre como castigar escravos e empregados, reprimir os fujões ou ampliar a reprodução das escravas. Eram pequenos livros, que por vezes continham imagens. Constituíam uma espécie de tecnologia do exercício da autoridade. Um dos mais conhecidos manuais, escrito por um certo Dr. David Collins, um médico inglês, sugeriu um tipo de "bônus" para escravas que engravidassem. O médico indicava que com o nascimento do primeiro filho, a mãe deveria ser dispensada dos trabalhos no campo no dia do parto. O segundo filho valia uma folga quinzenal. O terceiro, uma folga de 22 dias. O quarto, daria direito a mais 2 dias... e assim por diante.
Conselhos para evitar fugas.
A maioria desses manuais dedicaram-se a fornecer "conselhos" sobre como evitar fuga de escravos. "Castigos com moderação" eram os mais recomendados como forma de prevenir as "revoltas". Alertavam também que era de bom alvitre permitir que os escravos pudessem criar porcos ou galinhas, bem como cultivar roças ao lado das senzalas. A ideia era de que gastassem tempo na pequena lavoura, capinassem as matas e, principalmente, se "divertissem", esquecendo os projetos de fuga e rebelião.
Como usar e dosar as chicotadas.
Outro tema recorrente nesses manuais era como "usar e dosar as sevícias". Sem maiores pruridos, sugeria-se abertamente, que as mulheres nunca fossem açoitadas em público. A ideia era não provocar a ira dos homens. Já os "machos", conforme constava, deveriam sofrer castigo exemplar. Convocavam toda a escravaria para assistir a punição, cena que, em geral, contava com a presença do mandão e do feitor. Os castigos eram considerados atos administrativos e de manutenção da ordem, mas também eram uma demonstração de poder do mandão.
Controle dos custos com a alimentação.
A questão do controle dos custos com a alimentação era outro assunto que demandava grande atenção. Os manuais afirmavam que cativos famintos roubavam para comer. Portanto, era melhor que o senhor reservasse, semanalmente, um quilo de farinha e novecentos gramas de carne salgada com o propósito de mantê-los "saciados e obedientes". Recomendava-se, também, que não se entregasse aos escravos a "ração" aos domingos, a fim de que a comida não fosse "desperdiçada rapidamente".
Ração para crianças.
No caso das crianças escravizadas, prescrevia-se que fossem alimentadas com arroz, mingau e caldo de carne. Dos cinco aos dez anos só deveriam receber "tarefas leves de trabalho". O objetivo era "fortalecer os músculos e moralizar o espírito". À partir dos doze anos, elas já eram consideradas aptas para serviços pesados para "devolver" aos senhores o capital nelas empatado.
Os manuais visavam controlar rigorosamente os escravizados. Medo e autoridade constituíam (e continuam a constituir) pares indissolúveis no Brasil. Buscavam referendar e reafirmar o poderio do mandão, que tinha (e continua a ter) controle sobre a vida, o destino e a morte dos escravos. O pressuposto era "dividir conhecimentos" e assim melhor dominar. Uma fotografia ou um longo e demorado filme da vida brasileira?