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Em Pauta

Medos: Colombo e os homens com cabeça de cão

Mário Sérgio Lorenzetto | 09/10/2018 06:49
Medos: Colombo e os homens com cabeça de cão

Em 1492, quando Colombo cruzou o Atlântico em busca de uma rota rápida para a Ásia, chegou a um lugar inesperado e desconhecido. Nada naquela ilha lembrava o que já lera sobre o Japão ou a China. Ali encontrou árvores extraordinárias, pássaros deslumbrantes que falavam, animais inexplicáveis e um quase nada de ouro. Mas havia uma coisa que ele esperava encontrar, fato que não ocorreu.
Após seu retorno, no relatório oficial, Colombo observou que havia "descoberto muitas ilhas habitadas por um sem número de pessoas". Mas acrescentou: "Não encontrei homens monstruosos nessa ilha, como muitos pensavam".
Por que, alguém poderia perguntar, Colombo esperava encontrar homens-monstros? As visões de Colombo estavam longe de serem únicas. Eram normais. Durante séculos, os intelectuais europeus haviam imaginado um mundo além de suas fronteiras, povoado por "raças monstruosas".

Medos: Colombo e os homens com cabeça de cão

"Claro que as raças monstruosas existem".

Um dos relatos mais antigos desses seres foi escrito pelo historiador romano Plínio, o Velho, em 77 d.C.. Em um tratado maciço, contou a seus leitores sobre pessoas com cabeça de cachorro, conhecidas como "cynocephalus" e criaturas sem boca, que não precisavam comer.
Em toda a Europa medieval, histórias de criaturas inacreditáveis hoje em dia, faziam parte das conversas corriqueiras. Relatavam a existência de pessoas com um só olho no centro da testa, criaturas com cabeça no peito e outras com uma perna só e um enorme pé (ideia original do nosso saci e do pé grande dos norte americanos). Essas criaturas podiam ser vistas em manuscritos copiados à mão por escribas que frequentemente embelezavam seus tratados com ilustrações dessas criaturas fantásticas.

Medos: Colombo e os homens com cabeça de cão

Embora sempre houvesse alguns céticos, a maioria dos europeus acreditava que terras distantes seriam povoadas por esses monstros. Histórias de monstros viajavam muito além das ricas bibliotecas de leitores de elite. Os frequentadores da igreja de Fréjus, uma antiga cidade mercantil no sul da França, podiam entrar no claustro da Cathédrale Saint-Léonce e estudar monstros nos mais de 1.200 painéis de teto. Alguns painéis retratavam cenas da vida cotidiana como um homem montando em um porco e acrobatas contorcidos. Muitos outros descreviam os monstros famosos com cabeça de cachorro e tantas outras crendices temíveis.

Medos: Colombo e os homens com cabeça de cão

Talvez ninguém tenha contribuído para espalhar mais a existência desses monstros que um cavalheiro do século XIV denominado John Mandeville. No relato de sua viagem a terras distantes, descreve ter visto pessoas com orelha de elefante, um grupo de criaturas que tinha faces planas com dois buracos e outra que tinha a cabeça de homem e corpo de cabra. Seu livro atingiu vendagem impensável para a época. Ultrapassou a Bíblia. Foi traduzido em todas as línguas escritas da Europa. Leonardo da Vinci tinha uma cópia. O mesmo aconteceu com Colombo.

Medos: Colombo e os homens com cabeça de cão

Por que sempre seremos obcecados por monstros.

O medo continua a saturar nossas vidas. Medo da destruição nuclear, medo das mudanças climáticas, medo do subversivo, medo dos estrangeiros. Talvez entre na lista, o medo político. Sem dúvida a tecnologia emergente e a mídia cumprem papel importante para a manutenção de nossos medos. Mas, em certo sentido, ambos sempre desempenharam um papel considerável para que os medos se mantivessem presentes. No passado, rumores e a cobertura da imprensa poderiam atiçar o fogo. Agora, com o surgimento das mídias sociais, medos, modas e fantasias correm instantaneamente através de populações inteiras. Às vezes, os detalhes desaparecem, tão rapidamente, quanto surgiram. Mas o vício da sensação do medo, da fantasia, persiste, como uma febre baixa.
Nos últimos três séculos, o Ocidente moldou a ansiedade e a paranoia na figura mítica do monstro. A desordem e a anormalidade tornaram-se monstros que a todos devoram.

Medos: Colombo e os homens com cabeça de cão

Rejeitando a racionalidade.

Os anos 1700 e 1800 foram uma era de levantes revolucionários que anunciaram um futuro sem limites, quando os filósofos e cientistas do Iluminismo proclamaram que a razão tinha o poder de mudar o mundo. A emoção foi empurrada para fora da esfera intelectual pelo raciocínio científico. Uma espiritualidade aterrorizada foi reprimida em favor do "deus relojoeiro", o deus da ciência.
Claro, nós humanos sempre tivemos medo. Mas enquanto o medo do demoníaco caracterizava os tempos medievais, as mudanças trazidas pelo Iluminismo em conjunto com a Revolução Científica, criaram um novo tipo de medo ligado aos avanços da tecnologia e à dificuldade de entender um mundo cada vez mais complexo.

Medos: Colombo e os homens com cabeça de cão

O "monstro de dentro" irrompeu e avança. É o monstro gerado pela nossa psique reprimida, o outro lado de nossa natureza humana, branda e inocente. Quando jovens indefinidos e aparentemente inofensivos se transformam em assassinos, o "monstro de dentro" apareceu. E eles andam em bandos.
Ao contrário dos Drácula, Frankstein e Mr.Hyde temos as hordas de zumbis. De uma era de monstros solitários, passaram a seguir monstros indistinguíveis uns dos outros, mas que formam batalhões para nos aterrorizar. O que a imagem horrível das hordas de zumbis representam para o século XXI? Eles devem comer nossos cérebros e simbolizar os medos das grandes epidemias, da globalização, dos estrangeiros e dos extremistas. O monstro perdeu a individualidade. Este é um mundo onde a tecnologia é impessoal. Passamos a ser um número a mais na agenda do celular.
Sim, continuamos comprometidos com a razão e a ciência. Mas parece que precisamos de nossos monstros e do nosso senso de encantamento também.

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