Como animais contam histórias e promovem a reflexão
"O silencioso encontro é profundo e revelador do que há de mais real na existência de cachorro e menina", revela o conto
Em literatura, animais e humanos trocam de papéis, permitindo aos segundos o deslocamento necessário à reflexão de sua condição. Na Antiguidade, Esopo (Nessebar, Bulgária, 620 a.C. – Delfos, Grécia, 564 a.C.) criou alegorias a partir dos animais, eles serviram para uma comunicação eficaz e persuasiva, aliás, a publicidade, quando precisa ativar as emoções mais pueris e que dispensam a racionalidade nos consumidores, frequentemente, recorre a anúncios nos quais os atores são animais.
É provável que Esopo tenha percebido que a condição distinta da humana, porém, também familiar aos Homens, permitia-lhe não soar impositivo contando suas histórias de caráter moral cuja intenção era a sugestão de normas de conduta. Suas personagens cometem erros, são más, desdenham de outras personagens dispostas à bondade, são sábias, porém, arrogantes, são comunicativas, todavia, tolas, agem por impulso e motivadas por razões nem sempre virtuosas. Podemos imaginar com quanta antipatia Esopo seria recebido se estivesse falando de pessoas usando as próprias pessoas como exemplos. Se não despertasse a antipatia, quantos se permitiriam a experiência de pôr-se individualmente no papel daquelas personagens que se equivocam, perdem, agem mal para com as outras, são injustas, interesseiras?
La Fontaine (Jean de La Fontaine. Château-Thierry, França, 08/07/1621 – Paris, 13/04/1695) continuou a tradição de Esopo, preocupado com as potencialidades de estupidez, vaidade e agressividade no comportamento humano. Raposas, lebres, mulas, ratos, leões, tartarugas, cegonhas, formigas equivalem-se aos seres humanos nas narrativas e chamam ao questionamento.
Passadas as fases na história da literatura quando se preocupou com o fim específico de determinar condutas morais, seja por meio da alegoria das fábulas ou dos grandes feitos dos heróis (nobres, cavaleiros, predestinados à honra e aos atos elevados), animais e seres humanos continuaram trocando de papéis, mas de maneira menos moralizante, em situações mais complexas e com intenções sutis, embora ainda se relacionem à reflexão sobre quem somos (nós, os humanos), o que fazemos de nossas vidas e principalmente como nos damos às relações interpessoais.
Kafka (Praga, República Tcheca, 03/07/1883 – Klosterneuburg, Áustria, 03/06/1924), logo no primeiro parágrafo de seu mais brilhante romance, “A Metamorfose” (Die Verwandlung, 1915), transforma seu protagonista em um inseto, semelhante a uma barata, criando um dos mais famosos primeiros parágrafos da história da literatura. Somente após a transformação (na obra, não se investiga como se deu e isto não importa em seu contexto) é que são revelados os sentimentos de Gregor Samsa, o protagonista. Assim, o que parece uma infelicidade será também uma oportunidade de expor-se a todos com quem convive, desde a intimidade até as relações de trabalho, em sua fragilidade, na precariedade que é da natureza de todos nós, na estranheza que ninguém pode negar haver dentro de si e que tanto nos esforçamos para disfarçar. Samsa será banido de todos os círculos sociais, perderá seu trabalho, seu lugar na sociedade, na família, perderá inclusive seu quarto na casa familiar e representará um estorvo na vida de todos. O filho mais velho, transformado em inseto, perde seu emprego, então, os familiares passam a sobreviver alugando quartos. É importante pontuar que Gregor Samsa era quem sustentava pai, mãe, a irmã mais nova e era quem pagava o salário da empregada que cuidava do asseio da casa, somente transformado em inseto é que ele pode revelar o quanto se sentia explorado por todas aquelas pessoas se escorando em seu salário de caixeiro viajante e comerciário. Da mesma maneira, metamorfoseado em barata é que se revelam os abusos impostos por seu patrão. Tendo conhecimento do fato de que todos na casa do jovem arrimo de família se encostavam e dependiam dos rendimentos de seu esforçado trabalho, o patrão aproveitava para explorar o medo do rapaz de deixar de contar com aquela ocupação, fazendo-o trabalhar em ritmo desumano.
É por meio dos bichos que George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair. Motihari, Índia, 25/06/1903 – Camden, Londres, Reino Unido, 21/01/1950) alerta para os perigos das soluções políticas totalitárias, as contradições entre discurso e postura política das lideranças e para a tendência da multidão de entregar-se apaixonadamente a discursos fortes. Na sátira “A Revolução dos Bichos” (Animal Farm, 17/08/1945), galinhas, pombos, porcos, cachorros, cavalos, cabras, burros, ovelhas e vacas também representam características humanas, mas de maneira mais aprofundada do que nas fábulas, fazendo questionamentos densos sobre política, filosofia e identidade ao organizarem-se na intenção (franca, a intenção é sincera) de criar uma sociedade utópica, ideal, na Granja Solar, onde vivem, ao tomarem consciência de que suas vidas são inteiramente determinadas pelos interesses do senhor Jones, o proprietário da fazenda, e que toda sua realidade, seu dia-a-dia, tudo existe com um único fim: dar lucro ao senhor Jones, o único humano da história. “A Revolução dos Bichos” faz uma crítica ao autoritarismo de regimes políticos totalitários presentes à época de seu lançamento.
Na produção literária brasileira, a cadela Baleia, em “Vidas Secas” (1937 – 1938), obra-prima de Graciliano Ramos (Graciliano Ramos de Oliveira. Quebrangulo, Alagoas, 27/10/1892 – Rio de Janeiro, 20/03/195), é humanizada ao ser incorporada pela família de retirantes que viaja em busca de uma vida melhor. É em Baleia que estão marcados os traços mais intensos de humanização, a cadela promove os momentos de alegria, as expressões de vida e igualmente leva tristeza e pesar ao sentimento das personagens que, conforme o romance avança, menos e menos demonstram suas emoções, expectativas, intenções, dedicando-se apenas à sobrevivência. Em “Vidas Secas”, a troca de papéis é explícita e original: “— Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta”, como se tivesse medo de alguém ouvi-lo, Fabiano, o pai da família, conserta: “— Você é um bicho, Fabiano... Um bicho, Fabiano”.
Guimarães Rosa (João Guimarães Rosa. Cordisburgo, Minas Gerais, 27/06/1908 – Rio de Janeiro, 19/11/1967) no conto “Meu Tio o Iauaretê” (1961) relata a história de um sertanejo caçador de onças, ele mata tantas, tantas, que vira uma delas, como se participasse de uma aliança com o animal. A personagem continua pensando como homem, mas em corpo de onça, tornando-se um híbrido.
Uma menininha ruiva, sem saber seu lugar na vida, na cidade, na tarde, sem entender o porquê daquele dia excessivamente quente e aparentemente inútil, assim como de seu soluço insistente, sem conseguir conectar-se com outra coisa viva naquela tarde vazia, ganha ânimos vívidos ao encontrar seu olhar com o de um cachorrinho ruivo como ela no conto “Tentação” (publicado no livro “Felicidade Clandestina”, de 1971) de Clarice Lispector (Chechelnyk, Vinnytsia, Ucrânia, 10/12/1920 – Rio de Janeiro, 09/12/1977). O cachorrinho corresponde à sua epifania, que desperta a menina do torpor. A menina desperta o cachorro de sua condição apequenada, aprisionada, de bicho de estimação da senhora que o conduz pela coleira. O silencioso encontro é profundo e revelador do que há de mais real na existência de cachorro e menina.
*Marília Adrien de Castro, Dulce Martins e Lúcia Carolina escreveram juntas a obra literária "Hanny, Amor Eterno". São contos de uma cachorrinha que vive entre humanos e sonha com os humanos. A proposta, segundo elas, é que os homens se conscientizem mais sobre as questões animais e principalmente como os cães ocupam um espaço muito especial de amor e muitas vezes como um membro da família. As histórias de Hanny são embasadas na vida real ela existiu e até hoje vive no coração da Dulce e dos amigos.
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