O desespero e as descobertas de uma capivara no conto "Uma rosa para Dalila"
“Cinco bombeiros levaram mais de uma hora para resgatar uma capivara no Córrego Segredo, na Avenida Ernesto Geisel com a Rua Antônio Maria Coelho”. A manchete de notícia de 2010 é o inicio do conto de Reginaldo Costa de Albuquerque.
Como a capivara, definitivamente, virou o símbolo desta cidade, o Lado B resolveu prestar mais uma homenagem a elas, que já são centenas pela cidade.
Reginaldo Costa é funcionário público da Secretaria de Estado de Fazenda, autor dos livros "Sonetos no Azul da Tarde" e "O santo que não tinha pés", de onde foi extraído este conto. Foi um dos homenageados no livro "Vozes da Literatura", da Fundação de Cultura do Estado, lançado nesta semana.
A manchete acima é como fim trágico da história que começa a seguir:
Pela última vez ergueu a cabeça e encompridou os olhos nos verdores do lugar à sua volta. O canto dos sabiás pulava tímido entre a galhada, arranhando a face sonolenta da aurora, à procura da primeira claridade. Levemente molhado pelo orvalho da noite mal dormida, abandonou as tábuas do pontilhão, ao ouvir o rumorejo dos caminhantes e deixou-se escorregar na alfombra de tenra brachiária em brotação se estendendo até as cristalinas e frescas águas do Prosa.
Alvoroça-se no barranco oposto, nuvem buliçosa de coloridas borboletas, perto o festivo namoro das rãs se aquieta às esconsas. E mansamente começa a nadar, rompendo a corrente da angústia acumulada pelo tempo da espera.
Confiante na maioridade, não se despedira da família. Seu vulto ensombrecido pelos moitedos esgueirara-se sorrateiro do animado grupo de amigos, que conversavam em voz baixa para não interromper sonhos e roncos alheios. Pensou em contar-lhes o que se passava, mas a indiferença há muito sabida esmagou-lhe as palavras, não entenderiam, profanariam a sua idealidade.
Depois, nada o desviaria do intento. Só ele podia compreender o que lhe acontecia. Firma, detrás da orelha, uma rosa vermelha exalando fina estilha de tímido perfume que foi bulir com o repouso da folhagem de um camalote agarrado às raízes submersas.
Seguiu rumo à cidade, ondeando contente a flor da correnteza, em linha reta já, sinuosa adiante. O vento frio inibia a presença de mosquitos.
Uma hora o separa de lá. A rouquidão aos evos das corredeiras alertava a ameaça de calhaus soltos e rochas pontiagudas. Por vezes olha para trás os trechos percorridos, detalhes que não conhecia. Avançara um tanto. Agita-se numa parte funda e assusta um cardume de lambaris.
Troncos atravessados parecem jiboias de tocaia. Cipós vergam para coçarem-lhe o dorso, esquiva-se e, num arranco, esconde-se sob denso véu de névoa dando adeus.
Havia reticências ponteadas no semblante, mas enfrentaria sozinho um mundo novo e sua diversidade. Afinal, um fio de curiosidade sempre se enovelou no ar que respira. O motivo era nobre e valeria qualquer risco. Senhor de si mesmo nessa aventura.
Além disso, se destacara entre os seus, o mais forte da geração, desde que a luz da vida animou-lhe as vistas. E quando fartas tranças envolveram-lhe o pescoço, foi um tal de Sansão pra lá, Uma forcinha aqui, Sansão!
Só um Sansão embebedava-lhe a alma e afogueava o corpo. Um mês antes, o horizonte colhia a laranja do dia e um sol mais quente, mais vivo, mais alegre surgiu no declive da curva da pista de caminhada do Parque das Nações Indígenas e dois lábios de pêssego atiraram um carinhoso Lindo, serpeando lascivo em sua direção.
Deusa loura se achega, tira-lhe um carrapicho grudado na testa e afaga ternamente o local, Aceita ser meu Sansão? Elogiou as vistosas tranças e, Tchau! Apareço, hem?
Sentiu um leve e agradável tremor. O talo mascado do capim caiu-lhe da boca aberta, ao acompanhar, de dentro da nesga de mato em que se encontrava absorto, a cadência de lânguidos passos se afastarem.
Uma razão a mais para viver. Voltou e voltou. E numa dessas voltas revelou onde morava. Então sumiu.
A ronda estridente de quero-queros, a saltitar nas dobras da campina que margeia o córrego naquele ponto, faz crescer nos seus olhos de primavera, as garatujas suaves dos edifícios da região do shopping center, tremeluzindo no espelho azul do lago, onde o cavaleiro guaicuru, a um canto da ilhota, escova o bravo corcel, Rápido, amigo! Apressa-te! Queres montaria? A lança certeira? O caminho é perigoso, surpresas e inimigos que não conheces! Dizem que a polícia perseguiu um estranho nas imediações do teu destino, espreitava o jardim de certa residência. Cuida-te!
De que mistérios eram feitas essas perturbações que se fixaram na sua mente jovem? Por que o anseio de querer desvendá-los e vivenciá-los em todas as suas sensações?
Aspirou em grandes goles a brisa convidativa daquela manhã tão aguardada e num ímpeto galgou os obstáculos.
Livre das farpas do arame é atingido pelas mãos do Sóter se debatendo na falta de consciência de dejetos, plásticos e óleo, ali, onde se emaranha com o irmão Prosa.
Tinha pressa, quase que corria. Nos espaços em que o leito estreitava, deixava-se levar ora flutuando, ora nadando, observado por dois indiferentes paredões de concreto maculados por limo e pichações.
Antes de chegar ao endereço ansiado, ouve gritos e pessoas se ajuntam à borda do canal do Segredo com meio metro de água amarelenta, em pleno centro da cidade, Bicho, eu? Dois soldados, que não sabe de onde saíram, desafiam-no armados com redes de náilon e cassetetes de borracha presos à cintura, Não os temo! E avançam.
Finge um salto à esquerda e corre com agilidade para à direita, sob a decepção contida nas redes no vazio. O mais alto, moreno, com bigode bem preto e um tanto disposto, continua a persegui-lo. O outro, aparentando calma, se junta arrumando o boné. Têm o mesmo sadismo no sorriso, combinam a estratégia com sinais de sobrancelhas e açoitam novamente as redes.
Engoliu em seco, emitiu um brado e lançou-se por baixo da água no curto espaço entre as pernas dos seus oponentes, emergindo além, com cinco adversários refletidos nas pupilas assustadas, O que fiz de errado?
Um cinza espalhou-se no rosto, porém não era a sombra dos curiosos que aumentara, torcendo contra e apreciando o espetáculo, Que venham! Sucumbe ao combate. Erguem-no triunfantes, vencido, sob os eufóricos aplausos da plateia.
Olhando o azul do céu por meio dos quadrados da rede que o detém, não percebe o vulto feminino ao portão de aço, da casa ali na esquina, pedir a um passante os restos de uma rosa vermelha despedaçada sobre a negrura do asfalto quente.