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Comportamento

Amigo sobreviveu graças à geladeira, mas viu arquiteto morrer no Rio Miranda

Paula Maciulevicius | 11/12/2014 06:12
Primeiro imprevisto: a chalana que levaria a comida não conseguiu navegar e eles tiveram de retirar a carga. (Foto: Arquivo Pessoal)
Primeiro imprevisto: a chalana que levaria a comida não conseguiu navegar e eles tiveram de retirar a carga. (Foto: Arquivo Pessoal)

A data era 22 de julho de 2000, 14 anos atrás, 10 dias depois da saída de Campo Grande com destino a uma aventura fatal. O amigo, Renato Katayama, sobreviveu graças à geladeira, mas viu o arquiteto Rubens Gil de Camillo morrer numa lagoa do Rio Miranda. Engenheiro, Katayama diz ter repetido a mesma história centenas de vezes e se prepara para contar em um livro a versão definitiva sobre como foi a morte de um dos maiores arquitetos de Mato Grosso do Sul. Antes, ele repete ao Lado B como uma forma de descrever a sobrevivência quando ele é quem teria mais chances de ter morrido. 

"Conheci o Rubens Gil de Camillo numa sala de espera da prefeitura, em 1973. De lá para cá viemos mantendo certo contato e eu descobri que ele era um pescador de mergulho, que fazia caça submarina. Eu tenho um rancho no Rio Miranda que passa pelo Rio Salobra. A água é transparente e propícia para o mergulho e ele sempre insistiu que gostaria de ir comigo fazer pesca submarina. Eu dizia que não. Sou pescador de molinete, esse negócio não vai dar certo. Ele sempre falou, vamos lá e eu descrente e nós fomos".

Esta é a breve descrição que Renato Katayama, hoje com 66 anos, faz sobre o início da amizade. De fato, eles pescaram juntos dezenas de vezes até surgir aquela "aventura fatal". "Acabei, naquele acidente, descobrindo que dentro desta aventura existiram uma sucessão de coisas predestinadas, que aconteceram ali", recorda. A primeira delas era de Rubens não era nem para ter ido.

Katayama descreve a sobrevivência quando ele é quem teria mais chances de ter morrido. (Foto: Alcides Neto)
Katayama descreve a sobrevivência quando ele é quem teria mais chances de ter morrido. (Foto: Alcides Neto)

"Ele tinha um compromisso, eu convidei outros, mas uma semana antes ele disse que tinha resolvido os problemas e ia. Dizem que na véspera, ele dobrou o seguro de vida dele. É um ponto de interrogação. Isso eu não sei", conta. A aventura consistia em descer os rios Correntes, Piquiri, São Lourenço, ir até o Paraguai e depois subir o Miranda, até perto da ponte do Rio Salobra. Renato já havia feito a viagem de barco duas outras vezes, uma delas acompanhado da esposa.

Em 12 de julho de 2000, eles saíram em seis pessoas e três barcos. Só não contavam com o tempo ruim. "Foram 10 dias de muito frio. E esta aventura, ela apresentou um monte de dificuldades. Chegamos em Sonora, a chalana que ia levando os mantimentos, não conseguiu levar. Tivemos de tirar e descarregar em dois barcos", recorda.

A primeira parada do grupo foi num pesqueiro do Rio Paraguai, para pegar o terceiro barco. "Descemos o Correntes, entramos no Piquiri e meu barco pegou um pedaço de pau e eu senti um baque bem forte. Na mesma hora percebi que o ronco do motor mudou, chegamos onde tinha o terceiro barco, contatamos a batida na traseira e consertamos. Não ficou 100%, mas dividimos a turma e descemos", relata.

Entre os pescadores existe uma norma: quem estiver no barco da frente, quando o relógio marcasse 16h, deveria escolher um local para acampar, descer e montar a fogueira para receber os outros que vinham chegando. 

"Estava um frio danado. Descemos todo o Piquiri, entramos no São Lourenço e descemos até chegar no Rio Paraguai. Mas nós resolvemos, em vez de navegar, pegar uma carona num barco rebocador e fomos até Corumbá". 

Quando amanheceram na Cidade Branca, Katayama sugeriu que era melhor fazerem apenas um lanche e seguirem pelo Rio Miranda, antes de anoitecer. Mas a maioria optou por almoçar, sustentando que era a última cidade em que parariam. "A gente já tinha decidido almoçar, mas eu e o Rubens resolvemos tomar um café e fomos caminhando pelo cais. E ele encontrou um amigo que não via há 10 anos e nós falamos dessa aventura", descreve. O assunto chegou até o café e o amigo manifestou que havia acabado de passar um na agência de turismo de onde era dono. Eles seguiram para lá.

"O Rubens pediu para usar o telefone e ligou Ligar para Campo Grande. A mulher dele não estava em casa, estava no escritório. Ele ligou lá e ela atendeu". Neste momento, Katayama interrompe a narrativa para contar outra coincidência, o arquiteto havia perguntado se poderia abandonar a viagem, visto que deveria voltar para Campo Grande até a segunda-feira para se matricular num curso de Pós-Graduação, em São Paulo.

"A mulher dele disse que o professor do Rubens havia mandado um relatório por fax e que se ele assinasse e devolvesse, não precisava ir para São Paulo. Ela mandou no fax da agência, ele assinou e devolveu. Em 15 minutos ele estava liberado para continuar a viagem. Essa coincidência... Se ele não tivesse encontrado o amigo, se não tivesse o fax"... 

Um dos barcos que levou Rubens e Renato ao Rio Miranda em julho de 2000. (Foto: Arquivo Pessoal)
Um dos barcos que levou Rubens e Renato ao Rio Miranda em julho de 2000. (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto do acampamento de uma das paradas do acidente fatal. (Foto: Arquivo Pessoal)
Foto do acampamento de uma das paradas do acidente fatal. (Foto: Arquivo Pessoal)

O grupo deixou Corumbá por volta das 3h da tarde e chegou na boca do Rio Miranda 2h depois. "A gente estava na frente, eu e o Rubens, então encostamos o barco, tiramos as nossas coisas e estava armando um temporal. Em seguida chegou o barco que estava o Fernando e já estava começando a escurecer e nada do outro barco aparecer", se lembra.

O engenheiro recorda exatamente da cena, em que Gil de Camillo falou que eles deveriam ir atrás do companheiro de pesca, porque ele poderia estar à deriva. "Eu falei do temporal, que não era conveniente ninguém sair. Com a experiência que o Osvaldo, que ocupava o terceiro barco tinha, ele ia encostar e acampar", comenta.

Rubens não abriu mão e Renato então o acompanhou. "Eu falei: você não vai sozinho, eu vou atrás de você. Nesta hora foi outra coincidência, eu sempre carrego comigo um motor elétrico, mas entreguei e disse que não ia precisar disso. Nós fomos e tinha uma curva acentuada, quando viramos, o motor quebrou e nós é que ficamos à deriva", relata Renato.

Nas palavras do pescador, o temporal que chegava trazia uma das maiores desgraças que o homem pantaneiro pode enfrentar: o vento sul. "Nós estávamos muito perto da margem direita. Eu falei: vamos encostar, mas o Rubens não quis. Ele já via o acampamento e a fogueira mais pra frente, do barco que parou e disse: vamos meter remo e chegamos lá".

O que chegou na verdade foi o vento sul, com ondas que viraram o barco. "Na terceira onda o barco virou. A geladeira boiou e eu agarrei nela de um lado e o Rubens de outro. Eu não sei nadar. Estava uma escurião, um temporal, chuva e frio, a gente não enxergava um palmo", recorda.

O temporal foi das 7h da noite até 1h da manhã. Quando acalmou, a chuva continuou e Rubens então, segundo o amigo, resolveu deitar em cima dos camalotes encontrados no rio. "Ele me chamou, mas eu não ia largar a geladeira, era a minha tábua de salvação. No frio e na chuva fomos conversando, em nenhum momento a gente imaginava que ia acontecer alguma coisa. Quando foi 3h da manhã ele começou a bater dente e eu falei entra para a água que você está começando a ter hipotermia. Mas ele não quis, ele não queria falar para mim, mas acho que como o Rubens mergulhava, ele sabia o que podia ter lá dentro". 

Rubens Gil de Camillo morreu aos 65 anos. A foto é do arquivo pessoal de Renato Katayama, de uma das pescarias do arquiteto.
Rubens Gil de Camillo morreu aos 65 anos. A foto é do arquivo pessoal de Renato Katayama, de uma das pescarias do arquiteto.

Quando amanheceu o dia, os dois perceberam que estavam dentro de uma lagoa. "Ouvimos o barulho de motor, mas eles não iam encontrar a gente ali. Nisso o Rubens disse, vou nadar até a boca e de lá eu faço sinal para eles. Eu fiquei lá, quando foi 8h30 ele gritou que estava vendo a lagoa e era para eu ir".

Katayama descreve que seguiu se puxando por camalotes e arrastando a geladeira. "Lá pelas 9h30 eu já vi o Rubens e brinquei: você resolveu dormir agora? E ele estava bem assim" - sinaliza Renato, com a cabeça para baixo. "Ele não respirava. Eu encostei, puxei o cabelo dele e vi, ele tinha acabado de morrer.

No processo de hipotermia dele, ele infartou. Peguei o pulso e nada. E agora? Amarrei as pontas do salva-vidas dele na alça da geladeira e saí agarrado. Às 11h da manhã entrou um barco na lagoa. Era um dos nossos com um ribeirinho que achou que a gente estivesse lá mesmo. Eles encostaram. Eu falei: o Rubens morreu, me tiraram da água, tiraram meus óculos e eu desmaiei".

Renato se recorda de ter acordado às 5h da tarde daquele 22 de julho, envolto em cobertores e vendo a fumaça da fogueira. Os amigos contaram que a Marinha havia resgatado o corpo de Rubens e que ele deveria acompanhá-lo até Corumbá para passar por exames.

"Chegando lá o médico falou que mais meia hora e eu tinha morrido. Da cintura para baixo eu já estava sentindo que estava paralisado. Mandaram um avião, chegamos aqui e foi aquela comoção. Aí começou a cair a ficha, eu chorei muito".

Quando a história dos fatos chega ao fim, Renato reforça que faz questão de contar para esclarecer determinadas coisas. "Nós já tínhamos visto o acampamento, sabe? Era só uma questão de tempo, a gente estava a 1 quilômetros. O que a gente conversou naquela noite? De tudo. Fizemos faculdade na mesma universidade, falamos dos professores, dos filhos, da vida. De tudo o que você possa imaginar, até porque a gente sabia que se não conversasse um poderia dormir. A conversa era para evitar de dormir".

Aquela noite, Corumbá registrou 6°C, mas com o vento e a chuva, a sensação era negativa. "O nosso amigo, ele tinha feito o que eu tinha falado, ele tinha encostado. Eu sempre fui uma pessoa muito calma, quando percebi que ele tinha morrido, é uma sensação muito ruim perder um amigo, nessa circunstância..." "Mas se eu entrasse em desespero, era pior. Eu nunca imaginei que ele pudesse ter um infarto".

"Nunca pensamos será que vamos morrer? Estávamos sossegados, iam nos achar". 

Amigo sobreviveu graças à geladeira, mas viu arquiteto morrer no Rio Miranda

Depois da aventura fatal, as coincidências do "e se" Rubens não tivesse ido, se tivesse voltado antes, se o motor elétrico não tivesse sido deixado para trás. Se eles tivessem encostado quando o temporal começou... Se, se, se.

"A gente vê que a vida é muito frágil. Aquele negócio, esse acidente, mudou muito o meu modo de pensar. Tem que aproveitar a vida e quando chega a hora, não adianta. Quem era para ter morrido era eu que não sabia nadar, era asmático".

Em setembro do mesmo ano, ele voltou a pescar. Em dois dias, pegou 27 pacus. "Foi tanto peixe, mas tanto peixe que parecia que o Rubens estava naquela pescaria, pegando peixe para a gente. O que vale, é a vida que você leva".

Rubens Gil de Camillo morreu aos 65 anos. 

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