Duas décadas depois, filha descobre o que pai viveu em 1 ano na África
Vinte e seis anos separam o trabalho de João Pedro e Rúbia, e sonho se reencontra em elefante de madeira
"O início de tudo..."
Vinte e seis anos atrás, uma imagem ficou na cabeça de Rúbia: a do pai chorando por horas no colo da mãe depois de voltar da missão que realizou durante um ano na Angola. Militar, João Pedro Costa Borges foi pela ONU (Organização das Nações Unidas) e, durante os 12 meses em que esteve fora, falava com a família por telefone toda a semana. Só que muitas vezes em vez de palavras, saiam lágrimas.
"Ele não conseguia falar, só chorava. Eu, na minha juventude, não imaginava tudo o que ele estava vivendo ou sentindo. Eu me lembro da falta que ele fazia para mim, e quando voltou... Nos abraçava e chorava muito", recorda a filha, a médica obstetra Rúbia Borges Loureiro, hoje com 40 anos.
Sem conseguir mensurar o aprendizado do pai, ela se encantou pelas imagens que traduziam o que havia sido a missão. "As fotos eram maravilhosas, lugares lindos demais, pessoas de sorrisos lindos, havia pobreza, mas havia muita alegria! Brilho nos olhos e emoção na feição", descreve.
Junto das recordações, de presente, seu João Pedro trouxe recortes de tecido e elefantes de madeira para a família, despertando na filha a ideia "eu vou pra lá, um dia eu vou!"
Vinte e cinco anos depois do retorno do pai, Rúbia viu a propaganda de uma missão para Angola, da Ong Atos. Hoje, médica obstetra em Campo Grande, ela pensou primeiro nas gestantes, e resolveu então apadrinhar um missionário. No entanto, o envolvimento foi tamanho que a entrega aconteceu por completo. "Cada dia mais sentia que era pra eu ir mesmo".
O embarque foi em março. A ida, a permanência e a volta de Rúbia foram marcadas pelo coronavírus. Apenas quatro dias. A doença não permitiu que o grupo terminasse o projeto da aldeia de Camizungo, próximo da Capital de Angola, Luanda, destino da missão voluntária da médica, mas fomentou um desejo imenso de ir muito mais vezes e fazer muito mais.
Como obstetra, a atuação seguia a linha de cuidados com as mulheres. "O que mais emocionou foi realizar a primeira ultrassonografia no Camizungo. A simplicidade das mulheres não permitia nem entender direito todo aquele acontecimento. Mas o sorriso no rosto da gratidão envolve poderosamente todos que estavam por ali! Elas não sabiam o que era aquilo, nunca fizeram um exame daquele, fugia do seu entendimento! Quanta simplicidade!", descreve.
No dia a dia, a médica ouvia e via a força das mulheres africanas que narravam ter sobrevivido à fome, e ter passado pelo trabalho de parto sozinha, numa casa de placa de alumínio. "Outras caminham até o posto mais próximo, o mais próximo é mais de 5 quilômetros, para ter seu bebê. Elas acompanham o não desenvolvimento saudável de seus filhos, pela desnutrição, com sequelas irreparáveis. Muitas enterram seus filhos ainda bebês, por causas que a gente nem imagina, mas que comida resolveria 95% dos problemas de saúde deles", explica.
"A fome dói! Rasga! Saber que eles vivem numa situação de miséria, abaixo da dignidade, que não se compara a pobreza no Brasil, nos faz repensar em muitas coisas, inverte muitos valores que temos!".
Claro que Rúbia ouviu "por que ajudar tão longe"? Para cada crítica, uma única resposta: "cada um tem um chamado, meu coração nunca queimou assim por nenhuma comunidade carente que eu já visitei. Senti que é lá o meu lugar".
Também escutou que deveria "ajudar em silêncio, sem ninguém precisar saber". No entanto, repete que a intenção não é mostrar o que fez ou faz, e sim o quanto é bom ser útil.
"O quanto de pessoas precisam de tão pouco pra ser feliz, como podemos ajudar de todas as maneiras, não só financeiramente, um povo tão carente. Passo para estimular mais pessoas a sentirem o que a gente senti lá, pois mais abençoado é quem doa. Poder fazer algo para uma só pessoa de lá, que seja uma única pessoa, faz tanta diferença que transcende o entendimento! É muito além de amar", resume.
No retorno, ao assimilar tudo o que viveu em tão pouco tempo, Rúbia entendeu o que as lágrimas do pai queriam dizer. Quando a Angola recebeu João Pedro, o militar tinha por volta de 40 anos, mesma idade da filha hoje.
"Eu sempre pedia a Deus para que me desse força e saúde para vencer aquele desafio voluntário. E também orava para que um dia eu pudesse voltar para dar um pouco mais, além da missão para a qual tinha sido escolhido. Eu não tive essa oportunidade, mas Deus enviou você nesta nobre missão", fala sobre a filha.
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