Grávida na pandemia escapa dos olhares, mas não dos julgamentos
Ninguém é obrigado a falar o que não se sente à vontade, mas sempre tem um para “xeretar” até quem está de quarentena em casa
Grávida na pandemia pode até escapar dos olhares, mas não dos julgamentos por não ter espalhado aos quatro ventos a gestação. Sempre tem aquele inconveniente que adora meter o “bedelho” onde não é chamado e até envia mensagens para seus amigos mais próximos, na intenção de saber o que está se passando na sua vida. Esse comportamento tem relação com a curiosidade, com o desejo de controlar o outro através da sua própria “verdade” e preencher um vazio existencial.
“Projeção da própria verdade no outro, com o desejo de ser valorizado pelo outro, seu ‘objeto de desejo’. Com a vontade de ser visto e acompanhado, uma forma de ampliar a influência social, etc. Em todas as situações o ‘eu’ está mais forte do que o ‘tu’. Ou seja, o ‘eu’ aparenta ter necessidade de atender os próprios desejos com muito mais intensidade do que olhar o outro na sua singularidade. Nesse caso, o outro passa a ser coadjuvante”, diz Neido Castilho.
Ele é psicólogo e explica que na atualidade, o exercício de cuidar da vida alheia, acompanhado pelo desejo de ser visto, está estimulado por acesso quase ilimitado e proporcionado pelas redes sociais.
“Essa liberdade produz a sensação de ‘momento feliz’ ou preenchimento do vazio existencial. Esse vazio existe por conta de um mal-estar gerado no conflito entre os instintos humanos, que são os desejos, e as formas de convivência construídas para se existir numa condição civilizada, na qual devo limitar meus desejos para viver em civilização”.
Essa “curiosidade” de saber o que está se passando na sua vida não acontece apenas na gravidez, como também quando um adolescente começa a namorar e a pessoa fica palpitando, dizendo que não devia, que é muito jovem, sem se importar com o sentimento do outro. Na escolha de uma graduação, na qual sempre aparece alguém dizendo que fez a opção errada, que deveria mudar porque não acha legal você fazer algo que ela não se identifique.
Se antes já era difícil escapar dos inconvenientes e das fofocas, imagina agora em tempos de isolamento, no qual algumas pessoas passam mais tempo em casa. São mais horas para vasculhar coisas nas redes sociais e dar palpite, mesmo sem terem pedido sua opinião.
Conforme o psicólogo, cuidar da vida alheia pode ser considerada, a partir de determinadas condições, uma forma de violência.
“Essa violência pode-se materializar no formato digital, como ‘stalking’ ou analógico que seria espionar, olhar da sacada. O problema começa quando esse observador passa ser um invasor da privacidade ou individualidade alheia”.
Fazendo uma análise geral, Neido explica que é instigante olhar para o outro porque é muito mais fácil olhar de fora. Porém, um problema se estabelece ao espionar e transigir na vida do outro, pois através dessa “observação” se pode estabelecer uma comunicação violenta.
“Essa comunicação violenta se caracteriza por ação sem empatia e verticalizada. Ou seja, eu cuido da vida do outro e através dessa observação desenvolvo imaginação a respeito dele. Essa imaginação é tratada como verdade absoluta, sem que a verdade do outro tenha vez ou seja considerada. É mais fácil fazer uma redução tratando o outro com uma palavra, sem considerar sua existência, sua história e o contexto envolvido”, destaca.
Essa situação de cuidar da vida do outro pode ser uma válvula de escape de alguém, para não lidar diretamente com a realidade na qual está passando. “Sem dúvida a pessoa que cuida da vida alheia, tem dificuldade de viver sua própria relação com o mundo e as outras pessoas”, afirma.
Uma forma de controlar o desejo de estar no “poder” é perceber o outro e a sua verdade, respeitando a individualidade. “Essa condição sempre estará estruturada na organização de uma convivência funcional, no desejo ficar junto e na compatibilização das diferenças pessoais”.
O desejo de ficar junto, a logística e a compatibilização pessoal, podem ficar comprometidas na relação com alguém que não percebe o outro na sua unicidade, o que pode ser o caso daqueles que gostam de cuidar da vida alheia, informa o psicólogo.
“Para essas pessoas, seria interessante entender a necessidade de ocupar o seu próprio espaço e permitir que o outro ocupe o dele e dessa forma, compartilharem o mesmo mundo”, diz.
Neido relata ainda que é difícil generalizar e considerar que alguém que cuida da vida alheia, necessite de algum tratamento psicológico. “O ideal é que cada um, diante das dificuldades nos relacionamentos interpessoais, busque alguma solução que torne mais funcional a própria existência. Sem dúvida a psicoterapia se apresenta como uma ótima alternativa, se a pessoa desejar”.
Aqueles que sentem estar sendo “invadidos”, com tantas especulações em torno da própria vida, precisam ficar atentos. “A sensação após ter a privacidade invadida é de sobrecarga intensa, por conta da percepção da perda de liberdade e segurança. Essa sobrecarga pode causar prejuízos à funcionalidade, porém, esses prejuízos variam de pessoa para pessoa, e cada caso deve ser analisado, avaliado individualmente e escolhido o tratamento se for necessário”.
Por outro lado, o psicólogo comenta que estamos permanentemente expostos se considerar que a maioria das pessoas pode ter um perfil na rede social, integrado numa rede global de internet.
“Nossa vida pode estar exposta no mundo digital e/ou no mundo analógico. No mundo digital, estabelecemos relações específicas e com menor profundidade que no mundo analógico, pois posso desconectar com muito mais facilidade. A sensação de invasão da privacidade pode ter dimensão diferente nesses dois mundos, devido ao alcance global do mundo digital”.
O segredo para lidar com essa situação de invasão está em aprender a estabelecer um “limite de fronteira”, que possa definir a dimensão da segurança e da liberdade em cada contato estabelecido.
“Sempre tentando responder: Que distância devo manter cada pessoa com quem faço contato? E não esquecendo que no caso das redes sociais esses limites de fronteira devem ser estabelecidos da mesma forma, para que o risco de se sentir invadido diminua. Quando se fala em limite de fronteira, não se pode esquecer que as pessoas somente percebem aquela verdade que eu exponho”, finaliza.
Curta o Lado B no Facebook e no Instagram. Tem uma pauta bacana para sugerir? Mande pelas redes sociais, e-mail: ladob@news.com.br ou no Direto das Ruas através do WhatsApp do Campo Grande News (67) 99669-9563.