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Comportamento

Internado e sóbrio, Fábio fez amigo "verdadeiro" pela 1ª vez em 31 anos

Dentro do hospital, três homens criaram vínculo que dá lição de amizade, amor ao próximo e solidariedade

Por Jéssica Fernandes | 27/07/2024 07:10
No hospital, Fábio* e Paulo compartilham abraço durante entrevista.  (Foto: Osmar Veiga)
No hospital, Fábio* e Paulo compartilham abraço durante entrevista.  (Foto: Osmar Veiga)

Três homens diferentes, de idades, cidades e realidades opostas dão entrada no hospital e por um desses acasos da vida são colocados no mesmo andar. Um deles é dependente químico e pela primeira vez nos 31 anos de vida encontra em dois estranhos apoio, empatia e até mesmo respeito. Em meio a luta contra o vício, Fábio* fez amigos que nesse momento delicado estão o ajudando a permanecer sóbrio.

O cenário dessa história se passa no HRMS (Hospital Regional de Mato Grosso do Sul). Na sexta-feira (26), Fábio completou pouco mais de 50 dias de internação. Por ele estar no começo desse processo, dando os primeiros passos no tratamento, a reportagem decidiu preservar seu nome verdadeiro. É por esse motivo que as imagens dele também não serão expostas no decorrer da matéria.

Os outros dois personagens principais dessa narrativa são Paulo Henrique Sampaio Ortiz, de 22 anos, e João Valdir Vieira da Silva, de 64 anos. O jovem deu entrada no HRMS com diagnóstico de pneumonia e o segundo estava com uma uma intercorrência na perna quando foi transferido de Ponta Porã à Capital.

Sóbrio há pouco mais de 50 dias, Fábio fala sobre período de internação. (Foto: Osmar Veiga)
Sóbrio há pouco mais de 50 dias, Fábio fala sobre período de internação. (Foto: Osmar Veiga)

Há alguns meses, Paulo e Fábio foram colocados no mesmo quarto: 407. Ali, a distância de uma cama para outra, começaram a conversar sobre a rotina hospitalar, depois sobre a razão de estarem ali, sobre a doença, o vício, a vida nas ruas e como poderia ser a vida para além das portas do HRMS.

Fábio veio do interior do Estado para Campo Grande onde estava vivendo nas ruas. No auge do vício, ele estava há mais de vinte dias sem comer, apenas usando drogas e foi aí que procurou uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) para pedir ajuda. Exames, internação, desintoxicação e remédios têm feito parte da sua rotina.

Ao falar sobre o tempo internado, ele conta que tem sido dias bons. “Pra mim tem sido bom porque na rua eu estava passando fome. Aqui comecei a melhorar, estou me sentindo muito bem, graças a Deus”, afirma. Sobre o período em que começou a beber e usar drogas, Fábio não se recorda, mas menciona que foi por volta dos 17 anos.

Gestos e toques no ombro revelam relação de parceria entre os pacientes. (Foto: Osmar Veiga)
Gestos e toques no ombro revelam relação de parceria entre os pacientes. (Foto: Osmar Veiga)

Na sequência pergunto como foi a primeira vez que ele se encontrou com Paulo. Ele já estava alocado no quarto 407 quando o jovem chegou. Naqueles dias, Fábio diz que só torcia para ter um bom colega de quarto.

“Eu estava orando para entrar uma pessoa e não tão idosa porque dá mais trabalho. Deus me mandou ele, ele chegou falando de Deus e eu me reconciliei com Deus e acabei melhorando. Eu peço que Deus abençoe muito ele (Paulo). Tô orando por ele”, destaca.

Paulo veio de Miranda com pneumonia após estranhar as tosses acompanhadas de sangue. No quarto dia, ele subiu para o sétimo andar onde, ainda sem saber, faria um amigo. Essa mudança de ambiente, conforme ele, já trouxe um alívio. “Eu estava assustado porque na área vermelha era muito movimento [...] isso me deixava preocupado porque não podia ficar ali porque é um assunto delicado, é pneumonia”, fala.

Ao entrar no quarto, Paulo estranhou só encontrar outra pessoa para dividir o espaço. “Eu perguntei pra ele: ‘Vai ser só eu e você aqui?’ Aí ele falou que sim, que os médicos passam de manhã, que eu só iria cuidar de mim e me alimentar. Aí eu falei: ‘sério, é tão tranquilo assim’. Aí a gente foi se conhecendo, ele me contou a história dele”, relata.

De certa forma, ele se identificou com a história de Fábio, pois também tem um passado que envolve vício. “Me lembrou eu porque passei algo parecido, é constrangedor, é difícil quando não tem ninguém do seu lado. Eu estaria na rua, mas minha mãe não me abandonou. Onde estava, ela ia atrás de mim”, desabafa.

É nesse ponto da conversa que o nome do João Valdir é citado pela primeira vez. Fábio foi o primeiro a conhecê-lo e depois foi quem o apresentou para Paulo. O caminhoneiro é o terceiro protagonista, o homem que é tratado com carinho. “É um homem sábio, gigante e quando se trata de ajudar o próximo se dispõe na hora”, conta Paulo.

 3º personagem da história, João Valdir é recebido com sorrisos pelos rapazes. (Foto: Osmar Veiga)
 3º personagem da história, João Valdir é recebido com sorrisos pelos rapazes. (Foto: Osmar Veiga)

Foi Valdir que conseguiu o básico para que Fábio tivesse toalhas, chinelos e itens pessoais para deixar sua estádia melhor. Além disso, Valdir também abriu mão de um celular que tinha para poder dar de presente ao Fábio. Após a alta, a intenção é que os três possam manter contato através de mensagens e ligações.

A alta é o período essencial para qualquer paciente que entra no HRMS com histórico de vício de drogas ou álcool, ou ambos. Fábio veio das ruas e estava sem saber qual destino tomaria quando chegasse esse momento. Durante uma conversa sobre mudança de vida, ele garantiu que gostaria de mudar. Novamente, Valdir deu um jeito, fez ligações e conseguiu encontrar uma casa de recuperação onde Fábio deverá seguir o tratamento já que essa é uma vontade dele.

Comoção - A história dos três chegou ficou conhecida no hospital porque nesse período de internação Fábio foi colocado em outro quarto, em outro andar. Durante 30 dias, Paulo e ele perderam o contato e esse tempo foi suficiente para que Paulo mobilizasse a equipe do hospital. Ele até então não sabia, mas o amigo tinha seguido para o setor da psiquiatria que é responsável por realizar o tratamento das pessoas que estão em fase de abstinência.

Paulo dá abraço em Valdir, que à reportagem é descrito como pessoa de "coração imenso" (Foto: Osmar Veiga)
Paulo dá abraço em Valdir, que à reportagem é descrito como pessoa de "coração imenso" (Foto: Osmar Veiga)

Nesse meio tempo, Valdir tinha dado o celular de presente que ainda não tinha sido entregue ao Fábio. Paulo também queria rever o amigo para entregar o aparelho que garantiria um contato externo entre eles. “A única coisa que queria era entregar esse celular quando tivesse alta, porque teríamos comunicação, faríamos o possível para ele não ficar desamparado”, diz.

A amizade sensibilizou funcionários que promoveram um encontro. Agora, os três estão em contato. Durante a entrevista, Fábio e Paulo também se comunicam através de gestos. Ao relatarem a amizade que surgiu naquele quarto, um dá tapinhas no joelho do outro e esses movimentos entregam que existe um vínculo, um apoio.

Ninguém espera ser internado e fazer um amigo no hospital. Fábio não esperava e expõe que até então nunca teve de verdade uma amizade. “Eu senti afeto por ele como irmão”, afirma. “Eu fui levando a minha vida a Deus dará e encontrei pessoas que viraram as costas, me destruíram, mas ele não virou as costas, não pensou que fosse um ‘noiado’, por isso nossa amizade é verdadeira”, completa.

 Valdir se emociona durante fala sobre ajudar o próximo. (Foto: Osmar Veiga)
 Valdir se emociona durante fala sobre ajudar o próximo. (Foto: Osmar Veiga)

Ao expressar o motivo de ser verdadeira, Fábio cita que o vínculo não surgiu devido a um interesse. “Geralmente as minhas amizades eram quando eu estava com dinheiro, estava com droga ou uma bebida. Essa era a amizade, mas uma amizade de coração puro, só foi com ele. Não foi pelo que eu tinha ou o que ele tinha”, esclarece.

O sentimento é compartilhado por Paulo que comenta que nunca fez um amigo dessa forma. “Deus é tão maravilhoso que em três dias de amizade, virou uma amizade tão grande e gerou muita preocupação e agora estamos aqui fazendo entrevista”, fala.

Depois de 30 minutos de conversa, Valdir chega e se junta ao grupo. Não demora muito e surgem as primeiras lágrimas nos olhos dele. Esse choro é causado ao falar sobre o contato com os meninos e sobre o papel que prestou.

“O melhor lugar para encontrar alguém para ajudar é no hospital [...] nós somos humanos, nós temos que ajudar o próximo [...] ás vezes não é dinheiro, é abraço, um pouco de confiança, porque se ninguém tiver oportunidade ele não segue em frente. Todo mundo merece uma chance”, frisa.

Nos minutos que fala, Valdir dá exemplos de que a ajuda ao próximo é essencial, é sobre dividir, abrir mão de uma camisa se você tiver duas, é solidariedade na prática e não na teoria somente. É dessa forma que ele vê a vida e a coloca em prática. Não foram apenas itens de higiene, um celular, foi esse carinho, a chance que para quem precisa faz total diferença

Os planos de Fábio para o futuro incluem primeiramente a sobriedade. Depois, ele pretende retomar os estudos, porque na infância não teve oportunidade. Para completar, ele quer voltar para a igreja.

Paulo estudou até o nono ano, parou na escola aos 15 anos. A meta dele ao sair do hospital é concluir os estudos e entrar na faculdade. O jovem quer fazer Enfermagem, pois espera ajudar outras pessoas.

Valdir deve regressar para Ponta Porã com o compromisso de manter contato com os dois rapazes.

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