Na Rua da Gratidão, moradores agradecem, sem saber o quê
São cinco quadras onde moradores vivem um misto de sentimentos, agradecendo a vida, mas lamentando as circunstâncias
A “Rua da Gratidão”, em Campo Grande, é pequenininha, são cinco quadras. As pessoas parecem não se darem conta de onde moram. Está claro que os moradores nunca refletiram sobre a palavra que dá nome à rua.
Não julgo, isso é muito comum. Estamos acostumados a não refletirmos sobre as coisas que nos cercam. O Campo Grande News, por exemplo, fica localizado na “Rua da Paz”, e me parece uma das mais movimentadas da cidade.
E quem já parou para pensar realmente no significado desse nome tão poderoso, que é “paz”? A repetição faz o nome perder o valor semântico, então “paz” não é falta de conflito, ausência de problemas, de violência, “paz” é nome de rua.
Mas como o objetivo do Lado B é retratar nosso cotidiano por meio de suas particularides, sejam elas quais forem, evidentes ou não, fomos à rua, e olha, é um lugar paradoxal.
Digo paradoxal porque é um lugar tranquilo, na medida em que é esquecido. Afastado, quase no fim do Bairro Portal Caiobá, não tem asfalto. O clima é de cidade pequena, algumas pessoas sentadas em frente de casa, algumas crianças brincando na rua.
Descemos do carro da reportagem sob o olhar curioso dos moradores. Pergunto a seu Valdemir Serves Rodrigues, de 63 anos, que está sentado em frente de casa, se aquela é a Rua da Gratidão, ele diz que sim.
Sento ao seu lado e questiono o que acha do nome de rua. Parado alguns segundos me olhando, seu Valdemir parece tentar decifrar minha pergunta, o que quero com ela.
- Como assim?, quer finalmente saber.
Explico o intuito de nossa reportagem, o que não deixa de causar certa surpresa. “Achei que vocês tinham vindo fazer alguma denúncia, mostrar a situação toda aqui”.
Nesse meio tempo, outros dois familiares de seu Valdemir vão até a frente da casa. Acompanham aquele diálogo curioso. Levo a conversa, então, para o senso comum, pergunto da vida, dos cuidados em meio à pandemia, pergunto do bairro. “Mas assim, graças a Deus, não posso reclamar não”.
Outra expressão que não paramos para prestar atenção: “graças a Deus”. Pergunto se ele é religioso. Ele é. Não demora muito para falar de gratidão. “Sou grato pela vida que Deus me deu, minha casa, minha família”.
Seguimos a pé ali pra vizinhança. Na casa de João Brito, 62 anos e Marbina Bruno Brito, 85, mãe e filho, gratidão está escancarada no portão. A placa escrita a mão “Rua da Gratidão” é a única identificação que encontramos.
“É que aqui ninguém liga muito pra gente não. As casas não têm nem número, por isso coloquei essa placa aí”, explica João, vindo ao meu encontro no portão.
Em seguida, forte, levanta dona Marbina. Explicamos de novo o objetivo da reportagem, e de novo, uma surpresa. Tirando o boné da cabeça, como forma de respeito, João também lembra de Deus.
“Tenho gratidão pela minha saúde e de minha mãe, que está forte. Aqui somos só eu e ela e Deus está nos dando muita saúde”. Dona Marbina completa. “Aqui eu faço tudo menino, eu que limpo casa, que faço comida e com 85 anos”.
Jackson Antônio dos Santos, motorista, de 47 anos, diz não ter muito a agradecer. Desempregado mostra a situação do mato em frente sua casa, fala da rua e de sua situação. “Ser grato ao que?”. Difícil continuar a conversa.
Mais à frente, no fim da rua, está a família Gonzalez. Julião Gonzalez, de 67 anos, o patriarca veio do Paraguai há mais de 40 anos. Sentado, ao lado, está Gabriela da Cunha Gonzalez, de 57 anos, sua esposa.
“Quem colocou o nome da rua aqui foram as lideranças do bairro. Eu creio que, pela rua não devemos ter gratidão, mas por outras coisas com certeza. Não posso reclamar da minha vida, seria injusto”.
Na Rua da Gratidão há uma mistura clara de sentimentos. É agradecer algo sem saber a quem ou agradecer alguém sem saber o quê. Saímos de lá gratos, por mais uma reportagem feita.
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