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Comportamento

No CTI, medo de médica é se infectar e não poder cuidar dos pacientes

Na linha de frente, Pammela é médica intensivista que está cara a cara com o vírus, todos os dias

Paula Maciulevicius Brasil | 29/04/2020 06:23
"Paramentada", Pammela faz um registro de como trabalha diariamente dentro de um CTI. (Foto: Arquivo Pessoal)
"Paramentada", Pammela faz um registro de como trabalha diariamente dentro de um CTI. (Foto: Arquivo Pessoal)

Onde o tempo parece não ter fim, e a fé cruza com os estudos e técnicas. Nos leitos que já viram tantos apelos, sorrisos e últimos suspiros, o corredor até a saída espera ouvir uma salva de palmas para pacientes e médicos que juntos venceram o coronavírus.

Antes da pandemia levar o CTI (Centro de Terapia Intensiva) para os holofotes, a unidade sempre trabalhou no limite da capacidade, e agora tem se mostrado decisiva para aqueles casos da covid-19 mais graves. Ninguém está imune.

É dentro deste contexto que Pammela Suellen de Carvalho Moreira tem passado a última década. Médica especialista em terapia intensiva, trabalhar em CTI foi uma escolha, que hoje é vista como privilégio.

"Gosto da arte de investigação da Medicina, gosto de procedimentos invasivos, e gosto de emergência. É um lugar fascinante, com histórias de vida que dariam novelas premiadas. Tem muita coisa triste sim, mas muitos finais felizes também. Sou uma privilegiada por ser instrumento e espectadora de tantos milagres", diz a médica de 37 anos.

Para quem o CTI sempre foi um lugar sagrado, Pammela conta o que costuma descrever aos familiares dos pacientes. "Ali é um limbo, no tempo e no espaço. A recuperação do paciente depende da resposta do organismo dele frente a tudo que é feito, e isso gera uma expectativa, mas não tem como adiantar um só segundo neste processo, assim, parece que ali o tempo não tem fim".

É um lugar que sempre foi decisivo, importante, mas pouco valorizado. "Quando ouço a preocupação quanto aos leitos e profissionais capacitados de CTI para uma epidemia como esta, fica claro, mais do que nunca, que precisamos incentivar e valorizar também esta área da Medicina", levanta. 

Na mesma força em que os leitos de CTI sempre foram necessários, também sempre foram totalmente ocupados. "Por isso o sistema não aguenta o mínimo aumento do número de pessoas que precisam dele, é um setor que trabalha, o tempo inteiro, com capacidade total".

Na imagem, os mascarados são os filhos José Eduardo e João Bernardo com o marido Eder. (Foto: Arquivo Pessoal)
Na imagem, os mascarados são os filhos José Eduardo e João Bernardo com o marido Eder. (Foto: Arquivo Pessoal)

Casada e mãe, assim que soube que estaria na linha de frente, dentro do hospital referência para o atendimento na epidemia, Pammela sentou para conversar com o marido e traçar "estratégias". A primeira delas foi isolar os avós dos filhos, pertencentes ao quadro de risco, e criar uma rotina de desinfecção mais rigorosa. Usar álcool gel já era tão habitual que chegou a ser lembrança de nascimento de um dos filhos de Pammela.

"Por trabalhar em um lugar com contaminação, ao chegar em casa, já não usava o mesmo sapato, não me aproximava dos meus filhos sem banho prévio e continuamos a usar o álcool gel que sempre usamos, desde que eles nasceram, logo, isto já fazia parte da rotina, mas ficou mais acirrada, claro", fala.

Antes de chegar em casa, ela avisa por telefone o marido que entra com os pequenos dentro do quarto para evitar que a alegria em ver a mãe se transforme em um abraço difícil de evitar.

"Tomo banho e lavo os cabelos todos os dias e para isto precisei me adaptar também: cortei o cabelo mais curto; já usava brinco pequeno, não usava aliança e usava unhas curtas, mas passei a não usar esmalte e nem maquiagem por causa da máscara; sempre trabalhei de salto, mas por causa da dinâmica e de todo o aparato que se usa foi melhor a troca por um sapato fácil de retirar sem as mãos.  Outra forte mudança foi me fazer usar branco, acho que médico é meio avesso a branco e, além disso, sou meio desastrada também, então branco nunca foi uma opção pra mim. Mas é o que me permite misturar tudo junto na máquina com muito hipoclorito de sódio", exemplifica.

A médica acredita que ainda está em um ambiente seguro, mas no caso de haver um aumento no número de casos, que possa aumentar a exposição dela e da família, terá de colocar o plano B em prática. "Me ausentar de casa. Tenho dois bebês em casa, o José Eduardo de 1 ano e o João Bernardo de 3 anos, o João entende um pouquinho melhor, quando ele me vê de branco com a máscara ele vibra: "vai lá mamãe, ‘biga’ com o vírus"! Mas eles sentiram sim as mudanças e sentem os dias em que estou mais tensa, principalmente o "Zedu". Nós traçamos as estratégias mas... quem rege mesmo é Deus, então seguimos vivendo um dia de cada vez".

"Se eu tenho medo da COVID-19? Minha resposta é: Não! Tenho medo do "estrago" que o vírus possa causar nas pessoas e, se eu for infectada, de não poder estar lá pra cuidar delas", declara Pammela quando questionada.

Maior medo de médica é de não poder cuidar dos pacientes infectados no CTI. (Foto: Arquivo Pessoal)
Maior medo de médica é de não poder cuidar dos pacientes infectados no CTI. (Foto: Arquivo Pessoal)

Hoje os profissionais de saúde tem uma montanha de informações sobre a forma como este vírus age e, apesar de nada totalmente conclusivo, sabem que são muitos os mecanismos que ele possui e diversas armas de destruição. "Digo 'estrago', porque nem tudo se resume a morte, claro que é o pior cenário, mas as alterações e incapacitações que ele causa em outros órgãos e sistemas tornam uma luta mais pesada. Temos um inimigo muito astuto, e por isso tivemos que rever muitos conceitos. Além de estudarmos muito sobre ele, tivemos que modificar técnicas que eram medulares num atendimento", explica.

Diante de algo tão minucioso, onde qualquer coisa fora do protocolo pode levar a contaminação não só de um profissional, como de toda uma equipe, muitos detalhes precisaram ser revistos. "Isso é uma coisa muito séria, de uma responsabilidade muito grande. Trabalho com profissionais (enfermeiros técnicos, fisioterapeutas, meus residentes) excelentes, envolvidos, parceiros, mas que têm família em casa. Não podemos errar! Primeiro porque a família do paciente confia o maior amor deles a nós e segundo porque a equipe confia no médico que está no procedimento para protegê-los. Precisa ser tudo muito racional e no mínimo de tempo possível. É uma luta desigual".

Na linha de frente, quando perguntam se ela queria estar ali, a resposta é "digo que sou uma privilegiada, porque fui escolhida pra estar ali, acho que isto também responde a pergunta sobre qual a 'felicidade de uma médica de CTI', acho que, depois de toda batalha, olhar e ver que lutamos bravamente, demos o nosso melhor, e tivemos dignidade até o final é o nosso troféu. E olhar todos os envolvidos no processo, desde o tio da portaria até a tia da limpeza, é lindo! Realmente um exército inteiro do bem em ação. Por isso acho que essa epidemia não está fora de controle, tem alguém, lá em cima, no controle de tudo", crê.

Depois dessa pandemia, o CTI continuará sendo o lugar sagrado de Pammela, mas sua visão de mundo tende a carregar uma nostalgia. "Acho que passamos a valorizar mais o toque, o beijo e o abraço; passamos a brincar mais em casa; fazer refeições juntos. Éramos escravos do tempo, hoje estamos no controle dele. Nos voltamos mais para Deus em orações, penso que as coisas mais importantes voltam, neste cenário, a ocupar os seus devidos lugares. E quando me perguntam sobre o que eu quero fazer depois que essa epidemia passar, digo: eu quero estar na contramão! Quero ficar em casa, curtir meu maridão, meus filhos, reencontrar meus pais, meu irmão, minha família toda e descansar."

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