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Comportamento

O risco de gostar do isolamento e “beber” o inferno da solidão

Thailla Torres | 23/04/2020 07:21
Tudo bem querer ficar sozinho, por um tempo. Mas vale lembrar que há cores em você que o mundo precisa ver. (Foto: Thê Fotografia)
Tudo bem querer ficar sozinho, por um tempo. Mas vale lembrar que há cores em você que o mundo precisa ver. (Foto: Thê Fotografia)

Sou da geração da negação, da turma que enche a boca para falar “já lidei com coisa pior” e “sei me virar sozinha”, só para se sentir adulta, autossuficiente, madura, o sinônimo do “tudo passa”. Mentira. Não é bem assim. Lembrando disso, o que tenho observado entre colegas e conhecidos de amigos, especialmente jovens, é uma adoração ao isolamento. E isso não se soma só a comodidade de dispor do sofá, improvisar planos sem avisar nem dar explicações, andar pela casa de qualquer jeito, comer a qualquer hora… é a vontade de não ter mais contato com pessoas. A justificativa? “Tô bem sozinho”.

Se falam que a felicidade está em se relacionar, como ver tantas pessoas querendo ficar só pode ser algo saudável? Não tiro a razão de quem, nesse processo, como resposta à crise da covid-19, está se retirando de quem não merece, de quem é tóxico e só suga. Penso que agora é hora, mais do que nunca, de priorizar. Quem acrescenta, ama, cuida, faz bem, faz rir e se sentir leve. Quem e o que. Mas nada disso significa se isolar das pessoas para sempre, penso eu.

Pela minha chefe ela nunca mais teria repórter na redação. Imagine a paz de quem há 35 dias está sem ouvir uma reclamação pelos corredores da empresa. Mas ela sabe que a vida real não é assim, e tem torcido para que tudo isso passe, com toda devoção.

Entretanto, como alguém que tem experiência com esse tipo de sentimento em volta, o que vejo por trás dos amigos que não tem a menor saudade de encontrar pessoas, da filha adolescente de uma amiga que não quer mais voltar para a escola, do filho que prefere não ver a família aos fins de semana, é um sentimento preocupante.

Questiono a psicanalista Vanessa Quadros dos Reis, 40 anos, que atua no Espaço Parletrê, em Campo Grande, se, de fato, é possível gostar do isolamento ou se as relações andam tão desgastadas que tem sido melhor ficar só. Ela explica que, neste contexto, há pessoas que tem gostado de se isolar porque as relações foram transformadas pela tecnologia. Então o exercício da palavra de corpo presente, do diálogo, aquele cafezinho com o melhor amigo (a) pode ter o mesmo efeito, só que cada um no seu “quadrado”.

“O confinamento, no momento, é uma recomendação. Alguns optarão por torná-lo mais frequente, percebendo que as relações podem ocorrer por meios tecnológicos sem que isso cause prejuízo ao convívio social. Não ter desejo de retornar à escola ou visitar familiares coloca em questão o laço social contemporâneo.

O relacionamento dessas pessoas precisaria ser revisto se causar sofrimento por aquele que escolheu não se relacionar, mas reitero: é preciso uma escuta singular daquele que fala sobre as próprias escolhas”, diz.

Mais do que prevenir o contágio, a atenção sobre o isolamento é também perceber os limites. Trata-se de uma escolha que se realizada de forma recorrente pode indicar sintoma de depressão e culminar em uma crise de pânico, por exemplo.  Por isso, Vanessa descreve em que ponto o isolamento deixa de ser saudável.

“Quando a pessoa apresenta uma falta de investimento de energia para atividades consideradas importantes por ela.

Se a pessoa gostava muito de estar na companhia de outras, mas que aparentemente sem motivos não encontra mais desejo para encontros. O deprimido é aquele que não encontra meios de justificar sua presença no mundo. Tem também as crianças que não querem o retorno dos encontros presenciais porque estão gostando da presença dos pais”, explica.

Tem gente que tem gostado não só de ficar sozinho, mas ver as ruas assim, vazias. (Foto: Kísie Ainoã)
Tem gente que tem gostado não só de ficar sozinho, mas ver as ruas assim, vazias. (Foto: Kísie Ainoã)

O isolamento pode ressignificar – Essa palavra tem aparecido em diversos artigos sobre comportamento no momento pandemia. É ressignificar o trabalho, a relação com a família, com os amigos, até mesmo a rotina. Em razão disso a psicóloga também é otimista. “As grandes tragédias possuem esse caráter humanizador. Há uma expectativa de que as pessoas mantenham a rede de solidariedade, o espírito de comunidade e a constatação de que mais do que nunca é preciso implementar políticas públicas que fomentem a igualdade de oportunidades entre os cidadãos”.

E como ajudar? – “Esta é a pergunta mais difícil”, diz Vanessa. “Talvez quando um vírus virtual chegar às redes e for necessário um isolamento presencial”, brinca. “É claro que isso é uma brincadeira. Mas sugiro o compartilhamento de um desejo em comum: um bom filme, uma partida de futebol, uma roda de tereré ou um show de rock, juntos de preferência (quando a aglomeração não for tão preocupante assim, claro)”.

Para os menores, crianças e adolescentes, o alerta é igualmente importante. “É necessário um resgate do lúdico. Para os muito interessados pelas telas, games e relações virtuais, é importante relembrar e resgatar o virtuoso, religá-los a arte.  Escolas podem fazer um apelo aos debates com opiniões e críticas sociais (material de muito interesse e de muitos compartilhamentos) nas redes. Todos deverão trabalhar com a reinvenção e a remodelação de todos os processos e modos de agir e todos terão responsabilidades diante do retorno ao convívio social”, pontua.

E se vale um conselho, de quem já foi metida a durona e achou que valia a pena não sentir saudade das pessoas, saiba que ninguém é forte o tempo todo e nem precisa ser. Mas é importante admitir isso. Priorize, selecione, e tudo bem ficar sozinho, por um tempo. Mas lembre-se que há cores em você que o mundo precisa ver.

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