Para quem teve covid-19, difícil é suportar piadinhas e preconceitos
Depois da cura, o jeito é aguentar os “sarristas” dizendo para não se aproximar e o julgamento de ser o irresponsável da vez
Para quem já teve covid-19, difícil é suportar as piadinhas e preconceitos das pessoas. Como se não bastasse o diagnóstico positivo para o vírus que matou mais de 72 mil pessoas no Brasil, ter enfrentado o período de quarentena torcendo para não piorar ou contaminar a família, ainda tem que aguentar os olhares tortos e julgamento de terceiros, te achando o irresponsável da vez.
“As pessoas não têm noção o que é um isolamento. Ficar só na televisão deixa afobado, começa o pânico. Emagreci seis quilos em 14 dias, porém, o que mais me judiou foi o preconceito”, diz Lucyanne Scariot, 34 anos.
Ela é miss plus size Mato Grosso do Sul e proprietária de um restaurante no distrito de Congonha, onde mora com a família. O local fica na cidade de Bandeirantes e perto de São Gabriel do Oeste, onde costumava ir com frequência. No dia 19 de junho, Lucyanne foi diagnosticada com o vírus após passar mal e sentir dores no corpo.
“Meu primeiro sintoma foi no dia 16, quando senti desconforto na garganta. Mas, ao examinar, o médico disse que estava normal. Como eu não conseguia comer, pediu vários exames, até de urina que deu uma infecção, porém não sentia dor”.
No dia 19 do mês passado, Lucyanne acordou com febre e foi sozinha ao hospital, em São Gabriel do Oeste. “Acordei mal, com muita dor e fiz o teste de covid-19, através de um exame de sangue. Em poucas horas o resultado saiu e tinha dado positivo. No hospital, fiquei no soro”.
Na mesma hora o resultado foi parar na Secretaria de Saúde de Bandeirantes, que registrou o primeiro caso de covid-19 no mês passado. O dado vazou para os moradores em poucas horas, e logo o alvoroço nas redes sociais começou.
“Meu CPF [Cadastro de Pessoa Física] é de lá. Não sei como, mas logo as pessoas souberam disso e começaram a falar no Facebook, parabenizando [de forma irônica] o primeiro caso. A população foi como urubu. Eu ainda estava no hospital e minha mãe nem estava sabendo disso”, lembra.
Nos “parabéns”, Lucyanne sentiu a ignorância e o julgamento das pessoas, achando que ela não tomou os cuidados que deveria para evitar ser contaminada. No entanto, mesmo tendo toda cautela, ninguém está imune ao vírus. “A gente usa máscara, álcool gel toda hora”.
“Acho mais fácil ter contraído o vírus fazendo compra no mercado, pois os produtos passam de mão em mão e faço compras em São Gabriel do Oeste, onde tem casos de covid-19”.
“Naquele dia, tomei um coquetel no hospital e depois os médicos me liberaram”. Após a alta, Lucyanne encarou novamente a estrada e chegou em casa por volta das 16h. Meio abalada, ela informou a mãe sobre o diagnóstico, pediu para avisar os funcionários sobre a doença e entrou em quarentena, em seu quarto.
“Na segunda-feira da semana seguinte, o pessoal da saúde foi fazer o teste na minha mãe e os funcionários e deu tudo negativo”, diz. No entanto, o medo tomou conta dos moradores que denunciaram o seu negócio. “Ligaram para a secretaria de saúde e pediram para interditar meu restaurante, falando que minha mãe e meus funcionários estavam contaminados, mas não estavam”.
A situação a deixou chateada, pela falta de empatia e, principalmente, por julgarem sem saber o que realmente estava acontecendo. “A gente luta muito para ter aquilo e as pessoas quererem fechar nosso negócio. Ninguém sabe como é para manter”.
A falta de sensibilidade do próximo, tornou a quarentena ainda mais difícil, já que foram mais de 15 dias trancada dentro do quarto olhando para as paredes e para o teto. A televisão foi uma distração, mas às vezes, são tantas notícias ruins que também desperta o medo.
Semanas depois do isolamento, Lucyanne se curou da covid-19. “Fiz novamente o exame e depois de 17 dias o médico me liberou”, recorda. No entanto, mesmo após superar a doença, ela afirma que ainda sofre as consequências.
“Estou evitando sair de casa, mas quando saiu uso máscara e luvas. Vou ao mercado fazer compras para o restaurante. Porém, percebo que as pessoas não estão querendo chegar perto de mim. Às vezes, não fala diretamente, mas a gente também sente as indiretas”.
Bom humor - Matheus Ronda também pegou covid-19 e afirma não ter sofrido preconceito, porém não escapou das piadinhas. “Não sofri nenhuma forma de julgamento. As piadas, a gente releva”, diz.
Aos 21 anos, ele é técnico em informática e trabalha como analista de suporte em Campo Grande. Testou positivo no início da pandemia e além do vírus, também teve de encarar a dengue no mesmo período.
“A dengue derrubou minha imunidade e fez o coronavírus aparecer, veio com a carga toda e dei entrada na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] do bairro Guaicurus. Fui atendimento separadamente, fiz exame e estava com baixo oxigenação no sangue e todos os sintomas do vírus, com excesso da fibrose pulmonar. Fui receitado, voltei para casa e entrei em isolamento”, lembra.
A empresa onde trabalha soube da notícia e fez a esterilização do ambiente onde Matheus ficava. Ele ainda recebeu a ligação de um médico do local, colocando-se à disposição para ajudá-lo. Foram 15 dias em quarentena, mais dez dias de afastado para garantir a cura. “Em sete dias, perdi seis quilos”.
Dado o prazo do isolamento, ele se curou do vírus, mas ainda não escapa das brincadeiras de “não se aproxime dele”. “Compreendo o receio. Sofri pouco quanto a isso, pois qualquer coisa, eu brincava que ia dar uma tossida em cima”, comenta ele sobre lidar com os comentários, com bom humor. “Muitos têm medo, pois não sabem se ainda transmito”, completa.
Outros casos - Além de Lucyanne e Matheus, mais pessoas já entraram em contato com a reportagem para falar sobre às situações que tiveram de enfrentar por conta da doença. Alguns relataram que já se sentiram julgados por colegas de trabalho, vizinhos e até por funcionários de laboratório, quando iam fazer exames. O preconceito judia e afeta até a família, ao notar o afastamento das pessoas mesmo depois da cura.
Moradores do interior já revelaram inclusive o receio que sentem em dar entrevista, por medo do nome ser divulgado e serem vítimas de ataques maldosos nas redes sociais. A aflição aumenta ao imaginar os olhares tortos e o dedo na cara de "você não nos avisou" ou "deve ter contaminado outros". A sensação piora ao ser taxado de irresponsável, mesmo tendo tentado se prevenir ao máximo contra vírus.
A pandemia assola o mundo desde o final do ano passado e ninguém está imune ao vírus. Nas últimas semanas, os casos de covid-19 em Mato Grosso do Sul aumentaram. Para a infectologista, Carolina Neder, isso tem assustado a população. “As pessoas estão com muito medo. Mas não é um medo que faz você se cuidar, é medo por medo porque sair, saem”, adverte.
Para algumas pessoas a saída é por motivo necessário, mercado, farmácia. No entanto, também têm aqueles nunca tiveram contato com o vírus e, mesmo sabendo que a pandemia é grave, ainda acham que a doença não passa de uma "gripezinha" e continuam com as aglomerações.
Sem vírus, sem risco – A médica explica que após a pessoa ser diagnosticada, seguir o isolamento corretamente, tomar os remédios e não sentir mais nenhum sintoma depois da quarentena, está curada do vírus e não transmite mais a doença. “Se tá curada não tem risco. O ideal seria repetir o exame, como o que está escrito pelo protocolo de saúde. Mas, se a pessoa ter o diagnóstico, ficar em isolamento e depois de 14 dias não estiver sentindo mais nenhum sintoma, pode voltar [ao convívio social]”.
Questionada se, alguém que já foi contaminado pode pegar novamente a doença, a infectologista responde. “A gente ainda não sabe, pois é um vírus novo”. Enquanto não existe uma resposta definitiva, é bom continuar tomando os cuidados necessários e tendo mais empatia pelo próximo.
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