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Comportamento

Se o “plus size” da loja só veste até 40, qual é o tamanho da gordofobia?

Mulheres gordas falam sobre experiências na rua, relacionamentos e pressão para terem corpo magro

Jéssica Fernandes | 31/03/2023 06:43
Cartaz exibe frase 'Meu corpo é meu escudo de coragem', (Foto: Juliano Almeida)
Cartaz exibe frase 'Meu corpo é meu escudo de coragem', (Foto: Juliano Almeida)

Por cerca de três horas um jovem aguardou dentro da ambulância uma maca para obeso. O hospital não tinha o equipamento especial e após três paradas cardíacas ele morreu, aos 25 anos. O caso ocorreu em São Paulo, mas atingiu em cheio Letícia Polidório, que vive em Campo Grande.

Ao ler a notícia sobre o rapaz, a coordenadora da Cufa (Central Única das Favelas) levantou o questionamento. “Eu fiquei pensando que São Paulo é uma cidade grande que tem toda uma estrutura diferente de Mato Grosso do Sul. Será que Campo Grande, Mato Grosso do Sul, está preparado para receber esses corpos, corpos diferentes?!”, indaga.

A reflexão virou ponto de partida para a roda de conversa ‘Corpo Gordo, Corpo Livre’ que ocorreu na noite de quinta-feira (30), no Laricas Cultural, com a presença das convidadas Romilda Pizani, Luana Laline e Luanna Peralta.

Letícia Polidório organizou roda de conversa após morte de jovem em São Paulo. (Foto: Juliano Almeida)
Letícia Polidório organizou roda de conversa após morte de jovem em São Paulo. (Foto: Juliano Almeida)

O tema percorreu vários caminhos através de relatos de pessoas oferecendo receitas mirabolantes para emagrecimento, falta de cadeira no bar, provadores pequenos, gordofobia, amor próprio e rede de apoio. Num clima descontraído e informal, participantes se encontravam de alguma forma na vivência do outro.

Abordar a temática de corpos gordos, obesos, implica em discutir a gordofobia.  Esse preconceito, conforme Letícia, também é capaz de matar. Na roda, ela cita uma pesquisa para falar como os jovens estão lidando com os próprios corpos.

“Gordofobia mata tanto quanto o racismo, tanto quanto a homofobia e outras coisas. Eu estava lendo e é muito triste ter esses dados, mas temos 112% de jovens entre 13 e 18 anos que fizeram algum procedimento estético por conta da sua gordura corporal. São pessoas jovens buscando um padrão de beleza que nunca vamos alcançar”, pontua.

Roda de conversa reuniu mulheres na noite de quinta-feira (30). (Foto: Juliano Almeida)
Roda de conversa reuniu mulheres na noite de quinta-feira (30). (Foto: Juliano Almeida)

O preconceito vem, às vezes, em gestos sutis, porém violentos para quem sente. Usar o transporte público, tarefa comum para muitos, é desafio para quem não veste menos de 44. “A gente tem que pedir pro motorista abrir a porta de trás, a gente estava sentada no ônibus e as pessoas não sentavam ao lado”, declara a coordenadora.

O famoso estereótipo da pessoa gordinha ser a engraçada da roda foi mais um assunto que coube no encontro. A pedagoga Luana Laline expôs como funciona essa dinâmica e impacto nas relações.

“Eu sempre fui uma pessoa extremamente alegre, mas em algum momento a gente tem essa simbologia da alegria do corpo gordo ser a parceira, mas nunca desejado. Isso vem da infância, você é a parceira, a legal, a camarada, mas não é um corpo desejado. Isso é uma violência simbólica muito presente. [...] Você nunca é objeto de desejo, encantamento, nada”, comenta.

Espaço Cultural tem cartazes espalhados, como 'O seu corpo é resistência'. (Foto: Juliano Almeida)
Espaço Cultural tem cartazes espalhados, como 'O seu corpo é resistência'. (Foto: Juliano Almeida)

Em outro momento do debate a relação afetiva voltou a ser citada. Dessa vez relacionada a vergonha que homens sentem em assumir mulheres gordas. Numa altura do diálogo, veio o questionamento: “Pra levar pra cama um monte, mas e levar pra rua e te assumir?”.

A cobrança por ser uma pessoa gorda nem sempre vem de pessoas alheias. O apontamento em diversas ocasiões surge dentro de casa. A assistente social Angela Vanessa fala sobre a pressão estética que existe para pertencer a um padrão de beleza socialmente aceito.

“Para quem cresceu numa família geralmente tem os primos, irmãs magras e você que é gorda é a referência da vergonha, principalmente se você é de família interracial. É a parte negra e gorda da família e a outra parte que é bonita é magra e branca. Aí desanda porque nem que você emagreça você vai chegar naquele padrão”, destaca.

Apesar do tema sério roda de conversa fluiu de forma descontraída. (Foto: Juliano Almeida)
Apesar do tema sério roda de conversa fluiu de forma descontraída. (Foto: Juliano Almeida)

Quando a gordofobia não é escancarada em piadas, olhares e comentários maldosos ela vem disfarçada no discurso ‘preocupado’ sobre a saúde da mulher ou homem gordo.O corpo fora do padrão é tido como sinônimo de doença, enquanto o magro é  sempre saudável. A assistente social cita casos onde pessoas são elogiadas por aparentarem magreza mesmo estando doentes.

“Pessoas que estavam em processo avançado de câncer recebiam elogios pelo seu corpo. Pessoas que ficaram doentes falam: ‘Pelo menos emagreci’. Isso prova pra gente que essa pressão estética que acontece não é por conta da saúde”, ressalta.

A roda de conversa trouxe também a dificuldade que pessoas gordas sentem em encontrar roupas. O desafio se estende das araras com falta de opções no tamanho correto a provadores que carecem de espaço.

Proprietária do Laricas Cultural, Luanna Peralta, fala sobre importância do evento. (Foto: Juliano Almeida)
Proprietária do Laricas Cultural, Luanna Peralta, fala sobre importância do evento. (Foto: Juliano Almeida)

Nessa hora por mais 'desconstruído' que seja o pensamento, ainda que a mulher esteja confortável em usar peças que não escondam o corpo, a sociedade vem e ‘puxa o tapete’.

“Você vai lembrando que é gorda e vê que o sistema não tá pronto pra você”. A frase vem da proprietária do Laricas Cultural, Luanna Peralta que mencionou um caso onde não conseguiu experimentar no provador a peça que queria comprar.

Para quem cresceu lidando com situações assim, o sofrimento deu lugar à indignação. É o que revela Angela. “Já sofri muito com roupa, hoje não sofro mais, me indigno. Mesmo as lojas que são plus size, que plus size é aquele de tamanho 40? Não existe isso”, ressalta.

Em debate mulheres compartilharam e ouviram experiências. (Foto: Juliano Almeida)
Em debate mulheres compartilharam e ouviram experiências. (Foto: Juliano Almeida)

A roda de conversa foi esse ponto de encontro, acolhimento, empatia e tantas outras coisas que as participantes vivem diariamente. A discussão, que normalmente ficaria fechada ao espaço de uma universidade, chegou ao ambiente cultural e alcançou diferentes pessoas.

A programação do Laricas Cultural conta com rodas de conversa sobre diversos temas. As discussões realizadas no lugar, conforme a proprietária, são importantes para atingir diferentes pessoas.

“É exatamente para atingir outros públicos, é importante a gente sair da nossa bolha. Hoje a roda de conversa é sobre corpo livre, então é importante que pessoas que não são gordas escutem, porque quem é sabe. Mesma coisa de um assunto de femininos, é importante que homens estejam presentes para que escute o que a gente já sabe da luta”, conclui Luanna.

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