Histórias de alegrias e dificuldades que não se vê na passarela do samba
Por trás das fantasias, há pessoas apaixonadas por Carnaval e que encaram as dificuldades para entrar na avenida
Na avenida, o que se vê é só a ponta de muito trabalho e sacrifício, realizados sem nenhum contragosto. Também não se vê, no sambódromo, as histórias, que estão por trás das fantasias. São muitas e muitas pessoas merecedoras de ter suas histórias contadas aqui. No entanto, há, nesta reportagem, três personagens. São três histórias com suas particularidades, mas que trazem, nas entrelinhas, os enredos de todos os que tornam possível o Carnaval de Campo Grande.
Zé, roqueiro nos anos 60 que fez do samba a morada definitiva
A voz septuagenária que hoje transforma poesia em samba cantou rock nos fins da década de 1960. “'Awop-bop-a-loo-mop alop-bam-boom', lembra dessa?”, perguntou José Carlos de Carvalho ou, simplesmente, Zé, depois de mostrar um pouco o vozeirão, dando palhinha da música Tutti Frutti, do Elvis Presley.
Zé começou cedo e continuou sempre: foi técnico de som em uma rádio de Campo Grande aos 11 anos; ainda na adolescência, fez parte da banda de rock Pedrinho e seu Conjunto; foi locutor; serviu o Exército; aos 19 anos, mudou-se para São Paulo, onde fez curso de desenhista projetista; mergulhou no samba e aí fez sua morada definitiva. “Respiro samba”, resumiu Zé, que desde 1975 está à frente da União da Vila Carvalho e, atualmente, é presidente vitalício da escola.
Com 74 anos, Zé, que trabalha com móveis planejados, continua na ativa – e muito. Vocalista do conjunto Sambalançando, ele está com CD ainda “quente do forno”, que será lançado depois da Semana Santa. Mas a atenção, agora, é para o Carnaval, especificamente para a apresentação nesta terça-feira (dia 13) da Verde e Rosa.
“É um ano inteiro de sacrifício para uma hora e dez minutos na avenida”, afirmou. Ele se queixa da pouca ajuda financeira do poder público. Daí a necessidade de transformar criatividade e esforço em dinheiro para levar a escola para a avenida à altura da tradição da agremiação, fundada em 1969. “Fazemos almoço, bingo, rifa; nossa bateria show faz apresentação em festa...”, listou.
Quando a conta não fecha, o que é comum acontecer, os integrantes da escola tiram dinheiro do bolso. Zé, por exemplo, já teve de vender o próprio carro. “Teve Carnaval, que terminei zerado, sem dinheiro pra comer, e com muita dívida”, contou.
E qual é a recompensa de tanto sacrifício? Zé tenta encontrar palavras para responder pela razão o que é ditado pelos sentimentos: “Para quem não é do samba, não faz parte de escola nenhuma, talvez não entenda, mas isso aqui é um vício, é uma paixão”. A esposa, Ruth Garcia, 65 anos, que acompanhava Zé na entrevista, acrescenta: “Quem entra uma vez em uma escola de samba não tem jeito, vai querer voltar”.
Ajudado por Ruth a se lembrar de datas e outros números, Zé contou que a escola tem 20 títulos. Entre as tantas lembranças, uma que se destaca é a do Carnaval de 2016. “A escola me homenageou naquele ano”, conta e sorri, certamente fazendo rápido filme em sua memória. O samba-enredo foi “Meio Século de Samba, Meu Coração é Verde e Rosa, Dê ao Zé o que é de Zé”. A Vila Carvalho também foi campeã naquele ano.
Depois da entrevista, perto de uma velha Kombi, usada no trabalho, Zé mostra um pouco de seu talento como poeta. Em uma agenda, em meio a números de telefone, o sambista rascunha letras que se tornarão músicas. Alguns versos dizem muito sobre como ele demonstra encarar a vida:
"Eu vivo o hoje
O ontem já passou
O amanhã só a Deus pertence
A nossa vida são momentos marcados pelo tique-taque do relógio."
Dona Fátima transformou o sonho do marido em escola mirim da Capital
Um gaúcho sem samba no pé, mas apaixonado pelo ritmo. Assim era Adão da Luz, conforme Fátima da Luz, 64 anos. “Era o sonho do meu velho. Ele era um gaúcho que não sabia sambar e queria ajudar as pessoas a aprenderem a sambar”, conta Fátima sobre a fundação, em 2007, da Herdeiros do Samba, a única escola mirim entre as agremiações de Campo Grande.
Diferente do gaúcho Adão, falecido em 2006, aos 54 anos, a mineira Fátima tem muita ginga brasileira, gerada nos pandeiros e cavaquinhos cariocas. Mas antes do batuque, houve o som choroso da sanfona. “Meu pai era muito musical. Desde pequena, eu o ouvia tocando sanfona”, lembra-se.
Nascida em Matias Barbosa, pequeno município mineiro com cerca de 15 mil habitantes, Fátima se mudou, aos 17 anos, para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como empregada doméstica. Também ganhou a vida como vendedora em diversas lojas da cidade. Nas folgas, lá estava Fátima sambando na escola Império Serrano. “Aprendi muito nessa época”, lembra-se.
Com a experiência de carnavais do Rio, talento musical e muito amor por samba e crianças, Fátima fundou há 11 anos a Herdeiros. A escola é mirim e, por isso, desfila sem concorrer. “Se só tiver 20 pessoas, não tem problema, a gente vai para a avenida do mesmo jeito”, disse Fátima, enfática, enquanto costurava um dos figurinos e atendia, por telefone, a reportagem.
Maria, policial que aproxima pessoas e que se encontra na alegria da avenida
Na década de 1990, uma jovem de 20 anos, atendente em um supermercado de Campo Grande, recebe um convite de Carlos Pulchério Alves, um dos principais nomes do Carnaval sul-mato-grossense e fundador da Catedráticos do Samba, em 1965.
“Ele perguntou se eu queria desfilar na escola. Aceitei e, por nove anos, saí como porta-bandeira”, lembra-se a policial civil Maria Campos, 48, mais conhecida por seu trabalho voluntário de localizar pessoas e promover reencontros familiares.
Apaixonada por samba e Carnaval, Maria Campos, assim como outros integrantes de sua e das demais escolas, encara as adversidades – sobretudo, financeira – para entrar com brilho na avenida. “Espero o ano inteiro por esse dia!”, exclama, sem esconder a mistura de alegria e tensão nos momentos que antecedem a entrada no sambódromo.
Mas o “dia D” é resultado de horas, dias, semanas, meses de trabalho. E nesse tempo, é preciso contornar obstáculos. Neste ano, as dificuldades são ainda maiores. “Fizemos uma dívida muito alta”, disse, explicando que uma ajuda prometida pela prefeitura de Aquidauana acabou não vindo. “É a primeira vez que isso acontece”, enfatiza. Agora, conforme Maria, é entrar na avenida e se entregar.
Entre um e outro Carnaval, Maria e demais participantes da Catedráticos realizam ações beneficentes. "No Dia das Crianças, nós fazemos doação de brinquedos. No Dia das Mães, fazemos bolo...", mencionou.
Mas o que tornou a policial conhecida foi seu trabalho voluntário de investigar o paradeiro de pessoas desaparecidas e promover reencontros. Ela fala sobre o caso mais recente. “Uma mulher nos procurou para tentar localizar o pai do marido dela. Nós o encontramos. Aí, no sábado [dia 10], no aniversário dele, a mulher lhe disse que tinha um presente para ele. Aí o pai do marido dele, que ele não via há 20 anos, entrou enquanto tocava a música 'Pai' do Fábio Júnior. Foi muito emocionante!”, narra a policial.
Como esses, muitos outros reencontros já foram feitos através das investigações de Maria e sua equipe. O número é significativo. “Da última vez que fiz as contas, eram 3.180 pessoas”, contabiliza Maria.
Da emoção dos reencontros das famílias à emoção do batuque, ritmo e cores da avenida. É nessa gangorra de felicidades que vive Maria por duas décadas. E é isso que compensa as dificuldades do ano todo, é o contrapeso dos problemas diversos.