Negligência e burocracia, instituto denuncia drama de crianças cardiopatas
Instituto 1 só coração quer expandir atendimentos em Mato Grosso do Sul
Uma enfermeira, uma dona de casa e uma arquiteta. Três mães que viveram a experiência de ter filhos com cardiopatia congênita. Três mulheres que passaram pelo mesmo drama: a negligência médica. Três histórias que se entrelaçaram e culminaram na fundação de um Instituto que acolhe, ajuda e defende outras mães.
Gabrielle Montalvão – Diretora do Instituto 1 só coração
Gabrielle é enfermeira e há 1 ano perdeu o filho Kaleb, com apenas três meses de vida.
“Ele tinha uma cardiopatia grave porém, durante toda a gestação, desde o diagnóstico, eu sempre fui orientada a ficar no Estado, mas o caso dele era grave. A todo tempo os médicos falavam para eu ficar em paz, que não era nada. Passei por 4 cardiopediatras diferentes e os 4 falaram isso, e eu acreditei que estava em boas mãos. Eu só fui descobrir que a realidade não era essa, poucos dias antes do falecimento dele”.
Julyanna Nunes – Diretora financeira do Instituto 1 só coração
Julyanna é dona de casa. Descobriu que a filha tinha cardiopatia congênita enquanto ainda estava grávida. Não se conformou com as orientações que recebeu dos médicos após o nascimento. “Não estava tudo bem”, relembra.
“Na minha cabeça de mãe, não estava tudo bem. Eu dava banho na minha filha e ela ficava roxa. Foi quando achamos uma outra cardiologista e ela alertou que o caso da minha filha era grave, que ela precisava fazer um procedimento dentro de 15 dias pois não aguentaria sobreviver por mais de um mês”.
Fernanda Lisboa – Gestora de projetos do Instituto 1 só coração
Fernanda é arquiteta, mas hoje se reveza entre a profissão e os atendimentos às mães que procuram o Instituto. Ela também não se resignou diante das orientações que recebeu em Mato Grosso do Sul. Conseguiu o que muitas mães não conseguem: fazer a cirurgia intraútero.
“Graças a Deus e por insistência minha para lutar pela vida do meu filho eu fui embora, sem saber se eu teria chances ou não de fazer essa cirurgia intraútero. Mas o que me falavam aqui no Estado era que podia ser que meu bebê nem chegasse ao final da gestação. Eu fui desacreditada aqui”.
Com a cirurgia, realizada no HCor, ela conseguiu salvar os dois ventrículos de Felipe. Hoje, ele tem uma vida normal. “Aqui, eles limitam as mães a enxergar outras possibilidades. Eu não sei o motivo, mas isso acontece muito e é muito sério”, afirma.
Fernanda fez tudo via SUS, “Mas com muita batalha. Nós ligamos até em Brasília. Eu fui pra fora, pelo TFD”, explica Fernanda.
TFD significa Tratamento Fora do Domicílio, a sigla serve para identificar a documentação necessária para conseguir assistência médica fora do Estado e o primeiro passo para isso é buscar a SESAU, a Secretaria Municipal de Saúde. De lá, a pessoa é encaminhada para o TFD Estadual que regula e manda para o SISReg, o Sistema de Regulação do Ministério da Saúde e, depois, para a CNRAC, a Central de Regulação de Alta Complexidade. É um caminho longo e que leva tempo. Por isso é tão importante obter a informação correta.
Fernanda conta que utilizou esse meio e deu certo, mas não é sempre que isso acontece. Como é um processo burocrático, há o risco de não haver tempo suficiente para ser concluído, diante da gravidade do problema da criança. “Coração não espera”, afirma a Diretora Gabrielle. “Perdemos 1 criança a cada 15 dias”.
“Está sendo muito difícil esse acesso das mães. A gente pode contar nos dedos as mães que foram pra fora do Estado via TFD. A maioria está indo “fugida”; clandestinamente”.
Segundo a gestora do Instituto, além de estar vinculado a esse TFD, o Estado também é obrigado a fornecer para essa mãe, o transporte, a passagem aérea, de ida e de volta e ajuda de custo. “Essa criança tem direito a ter uma ajuda de custo diária com essa mãe, lá. Cerca de 85% das nossas mães são SUS. A gente fez essa pesquisa dentro do Instituto. A gente precisa muito desse serviço”.
O caminho que Julyanna trilhou para conseguir que a filha fizesse a cirurgia foi diferente mas, segundo ela, também teve obstáculos. A filha de Julyanna foi submetida à cirurgia no Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo.
“O plano de saúde é complicado também, muitas vezes, tem que judicializar porque é coração. Então, são cirurgias que não custam R$ 10, 20 mil, às vezes, a criança vai ficar 90 dias numa UTI que é um custo de R$ 2,3 milhões, R$ 500, 600 mil”, explica Fernanda.
O Instituto –Elas se encontraram através de uma médica. Uma pegou o contato da outra, começaram a conversar e montaram o grupo no whatsapp. Hoje, o Instituto ainda não tem um espaço físico, mas é muito ativo nas redes sociais e é pelo Instagram que a rede tem crescido. Enquanto ainda não tem sede, elas recebem as mães na casa delas.
Fundado há um ano, o Instituto 1 só coração auxilia as mães com diagnóstico na gestação, prestam assistência ao tratamento cirúrgico e proteção dos direitos da criança, inclusive, em situações de óbito.
Outro papel marcante do Instituto é o de denunciar falhas na estrutura de saúde e requerer medidas de atuação para melhorias na assistência especializada para crianças com cardiopatia congênita. Esta semana, a diretoria apresentou à SESAU, pedido de reavaliação da habilitação do hospital de referência no Estado e fiscalização dos serviços de cardiopediatria.
“Nós temos crianças de 8 anos que precisavam ter feito a cirurgia com 2. Essas crianças são roxas, têm deformidades nos dedos das mãos porque a insuficiência de oxigênio é gigante. Essas crianças cursam com mais tempo com sintomas da doença porque eles simplesmente não têm capacidade de garantir a todas o acesso à cirurgia”
Estudos apontam que os defeitos cardíacos congênitos estão entre as principais causas de morbimortalidade neonatal com prevalência crescente na população. Apesar de todo o avanço na assistência, as cardiopatias congênitas estão associadas ao aumento de perdas fetais, estando presentes em até 85% dos óbitos em natimortos, recém-nascidos e lactentes.
A incidência é de 8 a 10 por mil nascidos vivos, ou 1 em cada 100 nascimentos.
No Brasil, cerca de 28.900 crianças nascem com cardiopatia congênita por ano (1% do total de nascimentos), das quais cerca de 80% (23.800) necessitam de cirurgia cardíaca, sendo metade destas no primeiro ano de vida.
Próximos passos – Hoje o Instituto 1 só coração atende cerca de 80 mães. A intenção é expandir a rede para atingir todo o Estado. Para isso, toda ajuda é bem-vinda!
“De nós três, a única que ficou no Estado fui eu e a única que está sem o filho sou eu”, lamenta Gabrielle que diz que reverteu a dor do luto em determinação para se dedicar à causa.
“A cardiopatia é uma montanha-russa extrema, mas quando a gente encontra pessoas para dividir os problemas, ela se torna menos difícil”, finaliza a Diretora do Instituto.
Clique aqui para conhecer o Instagram do Instituto 1 só coração
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