A cultura de vacinação no Brasil e a covid-19
Considerando-se o histórico e a experiência das vacinas no país, é importante relembrar que nos anos de 1966 a 1973 o Brasil experimentava campanhas e vacinação em massa, como a campanha de erradicação da varíola, quando mais de 80 milhões de pessoas foram imunizadas (HOCHMAN, 2011). Embora o país tenha vivido a “revolta da vacina” no início do século XX, é fato que a vacinação contra a febre amarela, a tuberculose e a poliomielite nos anos 40 e 50 foram aumentando a convivência da sociedade com vacinas e o conhecimento de seus efeitos benéficos.
A experiência da erradicação da varíola, certificada em 1973, foi a oportunidade para a constituição do Programa Nacional de Imunizações (PNI) e do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, com suas replicações em estados e municípios. A sociedade continuou participando da vacinação de rotina e das campanhas públicas contra a poliomielite e, mais recentemente, contra o sarampo, a rubéola e a influenza (HOCHMAN, 2011).
Embora desconfianças e o crescimento do movimento antivacina impactem negativamente na cobertura vacinal, o calendário de vacinação continua sendo atualizado e ampliado, assegurando que as imunizações são um direito garantido pelo Estado.
A oferta de vacinas disponíveis no Brasil é maior do que aquelas ofertadas nos demais países da América Latina. Também nosso país é um dos poucos no mundo em que a oferta de vacinas é universal e gratuita, tornando-se o PNI um modelo mundial.
Diante desse quadro, defende-se que a cultura de vacinação no país foi construída por meio da crescente oferta de imunobiológicos, aliada à vigilância de seus efeitos protetivos. As altas taxas de cobertura, uma das principais características do país, no entanto, vêm caindo. Em 2016 e 2017, pela primeira vez a cobertura de vacinas contra a poliomielite ficou abaixo da meta estabelecida de 95%, ocorrendo o mesmo com pentavalente e hepatite B, que ficaram em torno de 80% (CRUZ, 2017).
Observou-se, ainda, uma queda importante da cobertura vacinal do calendário durante o primeiro ano da pandemia de covid-19. Dentre os fatores associados à menor cobertura estão a baixa disponibilidade de vacinas entre junho e dezembro de 2019 – houve suspensão e distribuição irregular das vacinas pentavalente, BCG e antirrábica -, a maior distância do serviço de saúde com vacinas e a menor cobertura pelo programa Bolsa Família (Queiroz, 2021). Isso sinaliza que as políticas de saúde são fortes indutoras da cobertura vacinal.
Como marketing social no Brasil, cita-se o caso do personagem Zé Gotinha, que ajudou a criar a cultura de vacinação e foi rapidamente utilizado nas campanhas vacinais voltadas ao público infantil. O marketing social pode ser comparado com a curva de Gauss (MAZZON, 2017). Na extremidade inferior da curva estão as pessoas chamadas de “Me informe”: pessoas prontas para mudança de comportamento, bastando a informação correta. Pessoas informadas por fontes confiáveis, como governo e autoridades, sobre os benefícios da vacina prontamente se vacinarão. No meio da curva está o segmento “Ajude-me”: são pessoas que, além da informação, precisam de outros estímulos, como benefícios ou punições, caso não mudem o comportamento. Para essas pessoas, que compõem o grupo mais numeroso da sociedade, será necessária mais do que uma simples informação.
No caso das vacinas, são exemplos o benefício de poder entrar em certos locais se estiver vacinada; ou punições, tais como não poder participar de programas sociais, caso não esteja. Na extremidade superior da curva estão as pessoas do tipo “Faça por mim”, aquelas que somente com auxílio assumirão o comportamento proposto, como a vacinação domiciliar de idosos. Um bom programa de estímulo à vacinação precisa de todos esses aspectos.
No caso do Brasil, no que se refere à vacinação contra a covid-19, o maior grupo, o centro da curva, está sendo desestimulado quando se retira a obrigatoriedade do passaporte vacinal.
No âmbito mundial temos mais de 265 milhões de casos e mais de cinco milhões de mortes acumuladas pela covid-19. Em termos de ranking mundial, o Brasil fica em terceiro lugar em número de casos acumulados, apenas atrás de EUA e Índia, e em segundo lugar em número de mortes pela doença, apenas atrás dos EUA (WHO, 2021). Esses números alarmantes são decorrentes especialmente do período pré-vacina contra a doença e do período inicial de vacinação, em que grande parte da população não estava com sua imunidade desenvolvida.
Quando consideramos a vacinação em escala global temos pouco mais de 43% da população completamente vacinada. Entretanto, importantes desigualdades em vacinação são verificadas entre continentes e países. Enquanto alguns países, como Portugal, Cuba e Chile, apresentam taxas mais elevadas de vacinação, ou seja, mais de 80% da população totalmente imunizada, vários outros, especialmente do continente africano, possuem menos de 10% de sua população totalmente vacinada.
Observa-se que pouco mais da metade das pessoas da América Latina e do Caribe estão totalmente vacinadas contra a covid-19. Nesse sentido, a região segue vulnerável especialmente pelas iniquidades detectadas em relação à vacinação, o que prolonga ainda mais a situação da pandemia de covid-19 (PAHO,2021).
Já o Brasil apresenta cerca de 70% da população totalmente vacinada (WHO, 2021), taxa que poderia ser ainda mais elevada se houvesse uma disponibilidade maior de vacinas. Com isso, observamos quedas drásticas, especialmente em número de casos graves e óbitos. Entretanto, quando observamos os estados, verificamos que as diferenças também são alarmantes. Enquanto alguns estados possuem cerca de 70% de sua população completamente vacinada, em outros essa cobertura está em torno de 40%. Considera-se, ainda, que a cobertura vacinal se torna um desafio dadas as condições geográficas de cada país, como extensão, clima e acesso, que vão além daquelas econômicas e pessoais.
É fundamental que todas as esferas de governo estejam aliadas em melhorar cada vez mais o acesso à vacinação da população e ajudem os países mais pobres nessa empreitada. Só assim será possível controlar esta pandemia, que é de todos, sem exceção.
(*) Deise Lisboa Riquinho é professora da Escola de Enfermagem e do PPG em Enfermagem da UFRGS.
(*) Idiane Rosset é professora da Escola de Enfermagem e do PPG em Enfermagem da UFRGS.
(*) Eliane Pinheiro de Morais é professora da Escola de Enfermagem da UFRGS.
(*) Cristina Rolim Neumann é professora da Faculdade de Medicina da UFRGS.
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