A guerra na Ucrânia e a economia global
“Guerra. A palavra, por si só, levanta uma gama de emoções, do horror à admiração…. Como historiadora, acredito que, se quisermos entender o passado, devemos incluir a guerra em nosso estudo da história humana. Os efeitos da guerra foram tão profundos, que deixá-la de fora é ignorar uma das grandes forças ... que moldaram o desenvolvimento humano e mudaram a história.” (Margaret MacMillan, “War: How Conflict Shaped Us”, 2021, tradução
A guerra retornou à Europa e, com ela, multiplicaram-se as imagens das catástrofes humanitárias: cidades destruídas, mortes de inocentes e deslocamento de refugiados. Os países europeus têm uma longa história de conflitos, disputas entre impérios, guerras religiosas, perseguições de minorias étnicas e raciais e expansionismo para além das fronteiras originais dos seus povos. A obra do historiador Michael Howard, particularmente o magistral “War in European History”, sugere que as guerras são determinantes na constituição das características idiossincráticas das distintas sociedades. O mesmo argumento aparece com força renovada no último trabalho de Margaret MacMillan: “War: How Conflict Shaped Us”.
Foi no rastro da “era dos impérios”, quando as nações europeias e os países de industrialização recente, como os Estados Unidos (EUA) e o Japão, dividiram o mundo entre si, que se forjou a primeira onda de integração econômica internacional. Foi depois de vencer duas guerras “quentes” e uma “fria” que os EUA consolidaram sua posição de hegemonia global. E, possivelmente, será no contexto do conflito em curso que a globalização contemporânea terá seu suspiro final. Pelo menos é isso o que se depreende dos alertas vindos de nomes influentes do mercado financeiro e da academia.
Nos últimos quarenta anos, as barreiras ao comércio e aos fluxos de capital foram virtualmente eliminadas, tanto por mudanças legais quanto pela queda brutal nos custos de transporte e comunicações. Com o desmonte da União Soviética e sua área de influência, e com a abertura econômica da China, Índia e de outros países com grandes populações, constituiu-se, de fato, uma economia global. Com isso, a produção de bens e serviços passou a se organizar em cadeias produtivas dispersas nas mais diversas economias. Ampliou-se a interdependência produtiva e financeira, o que permitiu, por um lado, ganhos de eficiência e inflação baixa e, por outro, maior exposição das economias domésticas aos choques externos. Nos anos 2000, estes se multiplicaram, especialmente com a crise financeira global (2007-2009) e a pandemia da COVID-19 (2020-atual), os quais produziram duas das maiores recessões internacionais já registradas na história econômica.
A guerra na Ucrânia coloca em xeque a recuperação iniciada em 2021 e aprofunda os problemas herdados das crises anteriores, particularmente o aumento da pobreza, a insegurança alimentar e as pressões inflacionárias. Em seu relatório de março, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) revisou em -1,5 ponto percentual a projeção de crescimento da renda mundial para 2022 e elevou a inflação, estimada em 2,5 pontos percentuais. Antes da guerra, prognosticava-se recuperação econômica consistente na maioria das economias até 2023. Agora, as incertezas se multiplicaram.
A despeito de terem um peso econômico global relativamente modesto – 2% da renda e do comércio; e entre 0,5% e 1,3% dos estoques de crédito bancário e de investimento direto –, Rússia e Ucrânia são dois grandes produtores e exportadores de alimentos, minerais e energia. Respondem por 30% das vendas internacionais de trigo, 20% de milho, fertilizantes minerais e gás natural e 11% de petróleo. Várias cadeias produtivas dependem de minerais como o paládio, usado, por exemplo, em conversores catalíticos para carros, e o níquel, insumo na produção de aço e baterias. Rússia e Ucrânia também são fontes de gases inertes, como argônio e neônio, essenciais para produzir semicondutores, e grandes ofertantes de esponja de titânio, amplamente utilizada na indústria, inclusive para a construção de aeronaves. Os preços de muitas dessas commodities aumentaram acentuadamente entre janeiro e março: trigo (+ 89%), fertilizantes (+77%), níquel (+63%), milho (+42%), paládio (35%), alumínio (+17%), minério de ferro (+14%), para citar alguns.
Se os efeitos da guerra, em termos de destruição física e humana, tendem a se circunscrever aos envolvidos mais diretos, suas repercussões sociais e econômicas podem atingir o conjunto da humanidade. A Economist Intelligence Unit estima que Rússia e Ucrânia garantem a produção de 12% das calorias/dia consumidas no mundo.
Países de baixa renda, portanto, com grandes populações e que são importadores líquidos de alimentos e energia, sofrerão ainda mais. Na Europa, onde o gás russo e o seu petróleo cru atendem a cerca de 40% da demanda (e mais de 60% do consumo aparente da Alemanha), os preços da energia dispararam e se tornaram extremamente voláteis. Essa realidade amplia a instabilidade financeira de milhões de famílias que se encontram em estratos inferiores na distribuição de renda.
Em artigo publicado no portal da Faculdade de Ciências Econômicas, argumentamos que a guerra na Ucrânia era o mais recente episódio a demonstrar que está em curso um desmonte das fantasias liberais em torno da construção de uma ordem internacional multilateral aberta, fundada em valores supostamente universais e democráticos e consubstanciada no direito internacional. Isto porque ela reflete a realidade cada vez mais complexa da disputa de poder entre os EUA, seus aliados, e as potências emergentes (ou reemergentes), particularmente a China e a Rússia. Tal confronto estratégico não começou com ela e dificilmente se limitará ao presente episódio.
A globalização pressupunha a “paz” e a “normalidade” político-institucional nos nódulos centrais das cadeias globais de valor. A pandemia e a guerra nos relembram que a concentração da produção de determinados insumos ou produtos considerados estratégicos – de respiradores a semicondutores, de trigo a vacinas e remédios – pode até ter reduzido custos no passado, mas hoje representa riscos sobre a segurança energética, sanitária e alimentar. A racionalidade econômica e a defesa da vida parecem não estar no centro dos cálculos políticos dos grandes poderes em disputa. Assim, assumindo-se a relevância das análises de Howard e MacMillan, é possível sugerir que a guerra da Ucrânia, particularmente se percebida como um reflexo do esforço estadunidense de conter rivais em potencial, poderá ser uma linha divisória entre o mundo que já não existe e aquele que virá a se constituir.
(*) André Moreira Cunha é professor titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.