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A liberdade de expressão também precisa de limites

Rodrigo Valin de Oliveira (*) | 22/02/2023 13:10

A liberdade de expressão, nos debates do Brasil atual, adquiriu dimensões importantíssimas: discute-se o seu alcance; descobre-se a necessidade de limites à manifestação do pensamento. Regimes políticos democráticos, efetivamente, exigem que os distintos direitos fundamentais existam de forma harmônica.

As sociedades plurais supõem a livre manifestação de crenças e ideias por parte de indivíduos e grupos. Criar, desenvolver, refazer e abandonar convicções são atividades intrínsecas ao ambiente democrático. E mais: a crítica, a oposição e o combate às ideias alheias são, em tal contexto, não só frequentes como desejáveis. É crucial que idiossincrasias e tendências se convertam em pensamento de possibilidades. Trata-se de um princípio de esperança, cujo veículo é o direito fundamental à expressão do pensamento.

Direitos fundamentais, no entanto, não são o espaço ilimitado de quaisquer atitudes ou deliberações individuais. O pensamento constitucional contemporâneo acentua a denominada dupla dimensão dos direitos e liberdades fundamentais.

De um lado, eles são direitos subjetivos, pois protegem uma esfera de vida que não pode ficar ao alcance dos poderes estatais. Vale dizer: direitos fundamentais constituem a salvaguarda da autonomia individual, não raro ameaçada pelo Estado. De outro lado, direitos fundamentais são princípios objetivos, alicerces da ordem necessária ao Estado de Direito. Esta segunda dimensão é responsável pelo equilíbrio que se estabelece entre os sujeitos de direitos fundamentais e o soberano popular. De fato, a convivência entre individualidades sob a forma de uma dada organização estatal depende do estabelecimento de limites a direitos, especialmente se a meta for uma democracia constitucional.

Para que uma sociedade civil exerça, com segurança, a liberdade de expressão, cabe a proteção da pluralidade dos meios e fontes de informação, ensina José Luis Cea Egaña, em seu Derecho Constitucional Chileno. Junto ao direito de emitir opinião e de informar, configura-se o direito de receber a informação de modo veraz, oportuno e objetivo. Trata-se, na última hipótese, de um direito revestido de caráter social, que corresponde à comunidade política em sua integralidade. Inclusive no campo da filosofia política clássica, sustentava-se que, para os fins da formação da vontade geral, o povo deveria decidir bem informado.

Mostra-se, assim, grave equívoco considerar toda e qualquer limitação ao exercício da liberdade de expressão uma modalidade de censura prévia. Direitos não são absolutos no que tange ao seu conteúdo e ao seu exercício.

O abuso e os ilícitos no exercício da liberdade de expressão merecem punição, respeitadas as normas constitucionais e legais. Ainda no entendimento de Egaña, a censura é um impedimento total para o exercício das liberdades de opinar e informar. Se as restrições, aduz o constitucionalista, forem parciais, temporalmente limitadas, impostas por autoridade competente e permitidas pela Constituição não conformam censura.

O princípio da igualdade, central no constitucionalismo contemporâneo, impõe a proteção de minorias, grupos vulneráveis e parcelas hipossuficientes da população. Racismo e outras formas de discriminação ilícita sempre merecerão repressão em um Estado Democrático de Direito. Resta inadmissível que práticas concretas condenadas em sistemas jurídicos plurais sejam acobertadas pelo manto da liberdade de expressão. Para exemplificar, atos racistas não perdem seu caráter ilícito porque emitidos em meios de comunicação social.

No Habeas Corpus 82.424, o Supremo Tribunal Federal examinou a temática da publicação de obra literária preconceituosa, que fazia a apologia de ideias racistas contra a comunidade judaica. Entendeu o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro que a liberdade de expressão “não se tem como absoluta. (…) O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (artigo 5.º, § 2.º, primeira parte).”

As democracias, bem compreendidas, comportam uma dura lição. Não são estes regimes apenas um mercado de liberdades, a serem exercidas sem parâmetros nem restrições. A preservação da dignidade da pessoa humana implica deveres, sem os quais a convivência humana seria tomada pela violência.

(*) Rodrigo Valin de Oliveira é professor na Faculdade de Direito da UFRGS.

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