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A memória do cinema que se esvai no fogo

Miriam de Souza Rossini (*) | 19/09/2021 10:30

Quem trabalha com a pesquisa sobre audiovisual precisa constantemente recorrer à busca de suas fontes. E as fontes do pesquisador são os próprios audiovisuais, sejam filmes, programas de televisão, etc., mas também são os roteiros, os cartazes, os projetos para busca de incentivos e financiamentos, e tantos outros documentos que possam dar pistas sobre a produção em si e sobre os seus modos de produção, de distribuição e de circulação. Sobre as formas que fez para encantar quem produziu e quem consumiu aquele produto.

Para poder fazer seu trabalho, o pesquisador do audiovisual procura suas fontes em tantos lugares, que às vezes dedica à procura desses materiais o mesmo tempo que leva para analisá-los, se não mais. As lacunas são muitas e sempre há algo para ser procurado; o que é encontrado, no entanto, sendo significativo, deve ser guardado. Por isso cópias do que é produzido precisam ser mantidas ou corre-se o risco de seu conteúdo ser perdido para sempre. E às vezes as cópias precisam ser salvas em suportes diferentes daquele em que foi produzida. Afinal, as produções podem estar em diferentes bitolas de películas ou em diferentes formatos de vídeo, etc. E, para que possa ser assistido de novo, o conteúdo precisa ser transferido para um suporte atual, como o DVD ou Blu-ray, ou o arquivo digitalizado pode ser disponibilizado em alguma plataforma de streaming ou acervo online. A atividade de guarda e de conservação do material é fundamental e constante, bem como as formas de colocar o material outra vez em circulação. São processos que mudam com o tempo e que precisam de pessoas especializadas para essas tomadas de decisão.

Se pensarmos que nossos produtos audiovisuais são parte de nossa memória, de nossa construção imaginária, de nosso modo de nos representarmos e de registrarmos fatos e eventos que nos rodeiam, com certeza iremos compreender que esses audiovisuais são também arquivos da nossa história.

Seja um vídeo publicitário, seja um vídeo institucional encomendado por uma prefeitura ou por uma empresa, seja um filme documentário ou ficcional, ou ainda os capítulos de uma telenovela – todos são parte dessa longa trajetória das sociedades contemporâneas e que podem ensejar diferentes tipos de curadoria para conservação.

Afinal, nada se disseminou mais rápido e mais vastamente do que o audiovisual. Chega em tantos recantos do mundo e em tantos lares, nos chega até pelos smartphones. São horas de produção e de gravação, do passado e do presente, e cada um apresenta um aspecto dessa longa narrativa que é a história humana desde o final do século XIX. Como contar a história dos desenvolvimentos técnicos e estéticos e tecnológicos e profissionais do audiovisual se não tivermos mais esses materiais como nossas fontes de pesquisa? Como falar da transformação das cidades, das mudanças de costume, do desenvolvimento social se não tivermos mais nossas fontes? Como falar das guerras, das revoluções, das manifestações populares se não levarmos em conta os vários pontos de vista que captaram esses eventos? Nada mais lógico, portanto, do que a preservação de um material assim tão vasto e importante. Um material que em vários momentos precisa ser resgatado e restaurado para ser preservado, pois se eles forem perdidos para sempre não teremos mais acesso ao passado registrado nessas imagens, que são também fragmentos de vida. Quando se perde um fotograma, é como se pequenos elos desaparecessem.

São tantas as histórias possíveis a partir dos audiovisuais que é assombroso quando vemos o descaso a que estão sujeitos esses arquivos imagéticos, em especial quando pensamos no Brasil. Se autointitulando como ‘país do futuro’, o Brasil mostra constantemente um desprezo pelo passado. Prova disso são os recentes incêndios em museus os mais diversos, em geral por falta de manutenção dos prédios ou por falta de condições técnicas para guardar o próprio acervo.

A falha em uma política pública para a preservação dos bens culturais é a face mais perversa desse descaso.

E é isso o que vimos acontecer no incêndio que destruiu um dos prédios que compunha a Cinemateca Brasileira na noite de 29 de julho de 2021. Um ano já trágico, com tantas mortes por uma pandemia sem controle, também viu morrer uma grande parte de seu acervo audiovisual. O pesquisador de cinema brasileiro e ex-membro do Conselho da Cinemateca Brasileira (2007 a 2018) Eduardo Morettin, em texto sobre o incêndio, deu uma ideia do tamanho da perda:  foram definitivamente destruídas quatro toneladas de documentação relativa às políticas públicas para o setor cinematográfico no Brasil; parte do acervo textual do cineasta Glauber Rocha, filmes em quantidades incertas (alguns perdidos para sempre) e os equipamentos cinematográficos, utilizados em diversas produções brasileiras, que integrariam o futuro Museu do Cinema Brasileiro. O museu estava em construção desde 2006, junto com o Centro de Referência Audiovisual e o novo arquivo de filmes. Justo nesse local destruído pelo fogo se constituiria a nova unidade da Cinemateca Brasileira, em São Paulo.

Este, porém, não foi o primeiro incêndio que a Cinemateca sofreu. Desde a sua emancipação do Museu de Arte Moderna de São Paulo e a sua transformação em entidade autônoma, em 1956, sob a presidência de Paulo Emílio Sales Gomes, a Cinemateca sofreu mais quatro tragédias em que perdeu parte de seu acervo e teria sua sobrevivência ameaçada não fosse o apoio público. Foi assim, por exemplo, em 1988, quando o então prefeito Jânio Quadros cede a área de um antigo matadouro para ser transformado na nova sede da instituição. E também foi o investimento público, de 2003 a 2013, que permitiu que a Cinemateca ampliasse suas instalações e abrigasse materiais que não são apenas do cinema, e atuasse fortemente no restauro de filmes brasileiros.

Então, não é de se estranhar que quando esse apoio cessa – lentamente a partir de 2016, mas fortemente a partir de 2020 –, dois incêndios ocorram e novamente tragam à memória os incêndios anteriores. Infelizmente a memória audiovisual que o fogo destruiu não volta mais.

(*) Miriam de Souza Rossini é professora do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFRGS.

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