“A Mulher Rei” e a oportunidade para se pensar o continente africano
Assistir ao filme A Mulher Rei é um bom exercício para treinar os olhos acostumados com produções de grande circulação, que popularizam imagens estereotipadas sobre o continente africano. A familiaridade com cinematografias apelativas a temas como instabilidades políticas, conflitos civis e violência em massa, encontra agora uma orientação para apreensão de outros elementos, em conexão com debates que ganharam força nas últimas décadas.
A iniciativa de reconstruir narrativas, com vista a trazer à tona novos protagonistas – neste caso as mulheres guerreiras do Daomé – pode ser entendida como uma oportunidade de revisitar histórias pregressas, diretamente ligadas à própria construção do presente. Já não dá mais para pensar o continente africano, atualmente composto por 54 países, como fruto de uma única histórica, como pontua Chimamanda Ngozi Adichie, afetada pelo tráfico de escravizados e as mazelas do colonialismo.
No filme, a atriz Viola Davis encarna Nanisca, na liderança de um exército de mulheres guerreiras. Ali aparecem seus dilemas pessoais que ao lado de outros personagens, passo a passo, revelam as muitas faces presentes nas combatentes. São mulheres que reúnem seus interesses próprios junto aos interesses coletivos, em uma composição influenciada por diferentes condicionantes, fator central para o envolvimento com a narrativa: são pessoas, formadas por dilemas e coerências.
A partir deste ponto, ganhamos intimidade. Vivemos as dores, as aflições e os desejos das personagens, marcadas por uma riqueza de características. A certa altura, profundamente envolvidas e envolvidos com o filme, nos inserimos em partes de um continente, uma região específica, um grupo e muitas culturas. Em uma atividade laborativa, quase imperceptível, retribuímos (para o nosso auto entendimento) o teor humanitário que por tempos foi roubado de povos e indivíduos pela narrativa colonial. Antes do filme, quantos de nós já havíamos ouvido falar das Amazonas do Daomé? Mais que isso, em que outra oportunidade poderíamos nos sentir partícipes daquela história que nos é contada na tela?
Agora vibramos por Nanisca, Rei Ghezo, as lutas de Nawi e tantas outras e outros personagens que carregam um pouco dessa energia distribuída pelo universo do imaginário. Os eventos, as representações e a trama se tornam partes de uma dimensão construtiva de outros significados que podem e devem ser incorporados à África.
E, dessas imagens, ressaltamos a potência da representação de mulheres guerreiras em um reino africano. O corpo de uma mulher negra em movimento, em luta, faz parte de muitas outras e alarga os horizontes por tempos dominados por uma indústria cultural, sobretudo, branca e eurocentrada. Precisamos prestar atenção ao que dizia Beatriz Nascimento, “É preciso imagem para recuperar a identidade, tem que tornar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o reflexo de todos os corpos”, para ganharmos novas chaves de interpretações.
As guerreiras do Daomé poderão assumir outras frentes de batalha, indo além das telas. Podem entrar mundo afora, como ferramentas em sala de aula, gerar conversas sobre histórias e até incentivar os assuntos triviais. De alguma forma, poderão penetrar em camadas que ainda são afetadas pelos discursos limitados, distorcidos ou tendenciosos.
Precisamos refletir sobre gênero, seja pelo reflexo das abordagens, seja pelo filme como um todo. Precisamos prosseguir nos debates combatentes ao racismo e as narrativas imperiais que desumanizam de forma abrupta um continente. Que usemos qualquer fresta que abra a porta de acessibilidade para conhecimentos plurais, multifacetados e distantes de narrativas reducionistas. Que consigamos entender que as guerreiras do Daomé existiram, assim como rainhas, políticas e também mulheres que no dia a dia construíram modos de existência sem os quais, hoje, nós não seríamos quem somos. É preciso entender que toda história tem o peso da mão que a escreve. O filme, os seus ângulos, dessa vez, são assertivos com A Mulher Rei.
(*) Núbia Aguilar é doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas (FFLCH) da USP