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A utilidade da ciência inútil

Marcelo Takeshi Yamashita (*)A utilidade da ciência inútil | 20/04/2023 08:30

“A arte é inútil”. Com esta frase, Chico Buarque inicia o DVD Romance. A explicação vem logo em seguida: uma música não é composta pensando-se em para que serve. Porém, através das letras e canções as pessoas que não falam português podem aprender a língua, e a melodia pode servir de fundo musical para um namoro.

Recentemente, um texto publicado na Folha de S.Paulo se contrapôs à utilização de verba pública para o financiamento do telescópio James Webb. O cerne da argumentação baseou-se na relação custo/benefício para a sociedade, tendo como foco a utilidade da pesquisa básica. É a famosa questão: “para que serve isso?”. O questionamento, feito normalmente por estudantes de primeiros anos, é ouvido com frequência por professores de disciplinas básicas.

A máxima irônica “Para que serve um recém-nascido?”, proferida por cientistas como Benjamin Franklin e Michael Faraday, ou o fato de que, nos anos 2000, 1/3 do Produto Interno Bruto dos Estados Unidos estava diretamente relacionado a produtos oriundos do desenvolvimento da mecânica quântica, revela a miopia de quem exige que, para justificar o estudo e o investimento em pesquisa básica, alguma utilidade imediata deve estar prevista.

De acordo com a lógica da serventia, a pesquisa básica de Max Planck, um dos precursores da mecânica quântica lá no início do século 20, nunca teria sido fomentada. Vários conceitos estudados lá atrás, sem nenhuma aplicação naquele momento, hoje dão suporte para o desenvolvimento de lasers e aparelhos de ressonância magnética para a medicina, por exemplo.

Exemplos de descobertas científicas feitas por mero acaso, durante o desenvolvimento de algum projeto, são tão frequentes que trouxeram para o universo da ciência o termo “serendipidade”. A palavra consta no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. De acordo com o dicionário Priberam, o termo significa “a faculdade ou o ato de descobrir coisas agradáveis por acaso”.

O termo serendipity foi cunhado pelo escritor inglês Horace Walpole em alusão ao conto popular que narra a história de três príncipes de Serendip, atual Sri Lanka, que ficaram famosos pela astúcia e sagacidade. Versões da fábula podem ser encontradas em diversos lugares. Uma versão em português, voltada para o público infantil, foi publicada com o título “Os Três Homens Atentos”.

O artigo Serendipity: Towards a taxonomy and a theory, publicado na revista Research Policy, organiza e classifica diversos tipos de serendipidade científica com base nos arquivos do sociólogo Robert Merton. O autor do estudo define quatro categorias para alocar os exemplos de serendipidade: walpoliana, mertoniana, bushiana e stephaniana (os nomes foram aportuguesados).

A serendipidade walpoliana está relacionada a pesquisas com um objetivo definido, mas que resolvem problemas inesperados. Em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, soldados expostos a gás mostarda foram levados para o hospital e examinados por cientistas – essa arma química foi utilizada pela primeira vez em combate durante a Primeira Guerra Mundial. Incidentalmente, foi observada uma queda drástica na contagem dos glóbulos brancos no sangue dos pacientes. Os especialistas formularam a hipótese de que ação semelhante poderia ocorrer em células cancerosas. Esta observação inesperada deu origem às estratégias de quimioterapia.

A serendipidade mertoniana se refere à solução de um problema que se quer resolver, mas cuja resposta aparece por uma via inesperada. Em 1837, Goodyear procurava há mais de uma década uma borracha termicamente estável. Acidentalmente, uma mistura de enxofre e borracha foi deixada em contato com um forno quente. Observando que o composto era mais resistente ao calor, Goodyear desenvolveu o processo conhecido por vulcanização.

As últimas duas serendipidades referem-se a descobertas que não estão relacionadas a um projeto muito bem definido. A serendipidade bushiana consiste na solução de um problema imediato com uma pesquisa incipiente que se encontra em uma fase exploratória. De maneira análoga, seria como andar sem compromisso por lojas só para “dar uma olhadinha” e encontrar algum produto interessante. A descoberta dos raios X, em 1895, por Röentgen, foi feita quando ele estudava um outro experimento feito por Crookes. O Viagra foi descoberto quando cientistas pesquisavam um novo medicamento para tratar angina.

A serendipidade stephaniana reúne acasos que não estão relacionados ao objetivo de um projeto específico, mas cuja descoberta resolve um problema futuro. Em 1903, o polímata Edouard Benedictus derrubou um frasco de vidro acidentalmente. O frasco rachou, mas os fragmentos não se espalharam. Benedictus verificou que o motivo foi a formação de um filme fino no interior do recipiente, como resultado da evaporação de alguns produtos químicos. Posteriormente, a ideia foi utilizada para prevenir acidentes (imagine cacos de vidro voando em um acidente de carro, por exemplo) através da produção de vidros laminados.

É claro que nem todo projeto dará início a uma revolução científica. Assim como a maioria da população não dará uma contribuição para a Humanidade como Marie Curie ou Isaac Newton. A dificuldade é saber quando será produzida alguma descoberta que dará uma grande contribuição para a Humanidade.

Nesse raciocínio, é importante que as agências de fomento reservem parte da verba disponível para assumir, inclusive, o custo de uma pesquisa básica mal-sucedida – projetos ambiciosos tendem a ser mais arriscados. Neste caso, uma política inteligente de financiamento à pesquisa básica pressupõe adotar um caminho intermediário entre o tudo e o nada.

(*) Marcelo Takeshi Yamashita é assessor-chefe da Assessoria de Comunicação e Imprensa da Unesp. Foi diretor do Instituto de Física Teórica (IFT) no período de 2017 a 2021.

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