Aquilombar a educação e territórios tradicionais no novo governo eleito
No dia 30 de outubro de 2022, vivenciamos uma representação de força do processo democrático que trouxe à tona a voz de uma ampla diversidade que determinou o resultado da eleição presidencial. A marca do voto nordestino, de mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+ e de povos e comunidades tradicionais (onde se incluem povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos, ciganos, comunidades de matriz africana, dentre outros) foi estrutural para essa significativa vitória.
Ao longo dos anos da gestão do governo que se encerra em 2022, as pautas desses segmentos fundamentais em nossa sociedade foram relegadas ou, em alguns casos, até criminalizadas e objetivamente combatidas pela gestão. Nesse contexto, os novos ares que perfumam o Brasil nesse novo contexto, enchem de expectativas de mais escuta, de mais acolhimento, de mais diversidade, de mais cores. Contudo, para que isso se efetive, é fundamental haver compromisso com orçamento, estruturas técnicas disponíveis e uma efetiva priorização política significativa.
O que se busca construir nessa retomada pelo Brasil diverso e colorido é que diversas políticas públicas, hoje sucateadas ou mesmo inviabilizadas para esses segmentos que elegeram o presidente Lula, ganhem força, além de novas inspirações para os desafios presentes em nossa sociedade que vive os últimos dias de um governo de extrema direita, e que ainda busca se recuperar da pandemia que deixou marcas profundas sobre todas e todos nós.
Ao mergulharmos no tema de um desses segmentos de destaque no contexto das eleições, as comunidades quilombolas do Brasil, nos deparamos com um cenário de terra arrasada no campo das políticas públicas federais. A paralisia impactante das políticas para os quilombos, além do crescimento da violência e dos conflitos, tem sido asfixiante. Dois aspectos são fundamentais nessa análise: como está a educação e o direito aos territórios tradicionais para os quilombos.
A identidade quilombola é estruturada a partir dos seus territórios tradicionais. Pensar a educação quilombola demanda, necessariamente, refletir sobre o território e sobre as lutas envolvidas para assegurar esse direito. Como afirma Silva (2012)1, “a educação quilombola é um processo de luta política” que está, também, vinculada aos seus territórios.
As comunidades quilombolas têm vivenciado historicamente efeitos do racismo estrutural. Diversas barreiras no acesso a políticas públicas fundamentais, como as educacionais, de saúde, ambientais, e as voltadas à regularização fundiária de seus territórios tradicionais são presentes há gerações nas comunidades. O significativo grau de vulnerabilidade nos quilombos se aprofunda em situações de crises graves, como a atual. A limitada garantia dos territórios quilombolas é um dos elementos que deve ser destacado.
No Brasil, a batalha das comunidades quilombolas por seus territórios se fundamenta em marcos legais, como o Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988. É dever do Estado brasileiro garantir os territórios dos quilombos, assim como proteger seus os modos de viver, fazer e criar bens materiais e imateriais associados à identidade e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade (arts. 268 do ADCT, 15 e 216 CF de 1988).
Na atualidade, a maior parte das comunidades não tem assegurado o direito a seus territórios, onde apenas 246 títulos foram expedidos para 357 comunidades quilombolas, em um universo de mais de 6 mil comunidades no país2. É um resultado ainda ínfimo e uma garantia fundamental não assegurada para a maioria dos quilombos no país. Os quilombos convivem ainda, em diversas situações, com conflitos, ameaças de expropriação e violências.
No campo das lutas pela educação das relações étnico-raciais e da cultura afro-brasileira e africana nas escolas, pauta histórica dos movimentos negros, alguns marcos de conquista foram alcançados, como a Lei no 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino dessas questões fundamentais para se pensar a sociedade brasileira na educação básica. Outros marcos de conquistas dessa luta são o Estatuto da Igualdade Racial (2010), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (2004) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica (2012). Essas conquistas fortalecem, também, a histórica luta pelo direito à educação nas comunidades quilombolas.
As conquistas históricas são fundamentais, mas a implementação desses marcos ainda é bastante limitada. É mais um desafio que o novo governo tem a sua frente. Muitos quilombos vivenciam, nos últimos tempos, o fechamento das escolas em seus territórios, a precarização na contratação de professoras/es, a não implementação das leis e direitos relacionados à educação quilombola em sua diversidade, a pouca estrutura nas escolas. Outro fator preocupante no cotidiano da educação quilombola é a invisibilidade dos dados sobre a educação quilombola. Houve um exercício de apagamento da diversidade do país, também nos dados escolares. Outro ponto de atenção para quem agora retoma a gestão federal das políticas.
Os pontos que são levantados neste artigo são desafios ao governo eleito com a pauta conectada com os direitos humanos e com a valorização cultural. É urgente fortalecer uma caminhada que rompa com a invisibilidade que foi crescente nos últimos anos sobre quilombolas e povos e comunidades tradicionais de forma geral, e que reestruture as políticas públicas para esses grupos, hoje bastante fragilizadas.
O governo de transição, recentemente formado, tem desafios monumentais pela frente, dos quais também estão incluídos os que aqui se apresentam. Alguns elementos são fundamentais nesse campo: a presença e sensibilidade de gestores e dirigentes comprometidos com esses temas, e a presença de representantes negras e negros e dos povos e comunidades tradicionais nos vários setores das políticas públicas, para que possam ter seu espaço de voz e seu olhar para o processo, dando destaque a essas questões urgentes. A composição da equipe de transição ainda apresenta desafios significativos nesse campo. Contudo, a luta cotidiana se faz presente para que as vozes ganhem mais coro. Nessa caminhada, a voz do aquilombar-se é guia.
(*) Givânia Maria da Silva é doutora em Sociologia, pela UnB.
(*) Bárbara Oliveira Souza é doutora em Antropologia, pela UnB.
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