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As meias do sr. Bertlmann e o Prêmio Nobel de Física em 2022

Paulo A. Nussenzveig (*) | 08/11/2022 13:30

Em 4 de outubro, a Academia Real Sueca anunciou os laureados com o prêmio Nobel de Física em 2022: Alain Aspect (francês), John Clauser (americano) e Anton Zeilinger (austríaco), por experimentos com fótons emaranhados, estabelecendo violações de desigualdades de Bell, e por pioneirismo em ciência de informação quântica. Esse prêmio coroa cientistas teimosos que investigaram um tema considerado durante muito tempo como “metafísico”, mas que se tornou a base de uma indústria que já movimenta bilhões de dólares globalmente. É uma história emblemática da ligação muito forte entre a pesquisa básica, motivada pela curiosidade, e inovações, que adaptam as ideias para que gerem significativo impacto na sociedade.

Nas primeiras décadas do século 20, físicos desvendaram muito da natureza atômica e subatômica da matéria. Mas isso obrigou uma revisão drástica dos conceitos até então vigentes, desafiando o senso comum. Ao investigar a natureza, buscamos evidenciar propriedades individuais dos sistemas estudados que sejam independentes das nossas observações (“realismo”). Também consideramos que essas propriedades são determinadas localmente: não podem ser alteradas instantaneamente à distância (“localidade”). Pois a física quântica parecia desafiar essas noções, quando combinadas, o que levou Albert Einstein, juntamente com seus colegas Boris Podolsky e Nathan Rosen, a questionar se a nova teoria não seria incompleta, se não haveria variáveis ainda desconhecidas (ocultas) que ainda precisávamos descobrir. Uma possível violação do princípio de realidade levou Einstein a questionar: “a Lua está lá quando não olhamos para ela”? Se o princípio de localidade fosse violado, para Einstein seria uma “fantasmagórica ação à distância”.

Entre 1935 e 1966, essas questões eram consideradas metafísicas. O americano David Bohm, que passou um período na USP, buscou formular teorias de variáveis ocultas, mas que eram recebidas com ceticismo. Robert Oppenheimer chegou a dizer: “se não podemos provar que Bohm está errado, devemos concordar em ignorá-lo”. Em 1966 o irlandês John Bell, que trabalhava com física de partículas elementares no CERN, publicou um teorema, formulado em suas horas vagas, que permite testar experimentalmente as previsões da física quântica contra as hipóteses combinadas de realismo e localidade. Sistemas físicos que interagem podem se tornar correlacionados, o que significa que medidas sobre um dos sistemas permite obter informações sobre o outro. Impondo as condições de realismo e localidade, Bell derivou desigualdades que deveriam ser satisfeitas. Com grande senso de humor, em 1980, para descrever seu trabalho, mencionou a curiosa mania de seu amigo e colega, Reinhold Bertlmann, que sempre usava meias de cores diferentes. Se um pé de meia era rosa, por exemplo, independentemente da distância, era possível saber instantaneamente que a outra meia era de outra cor. Correlações como essa estão presentes no nosso cotidiano e são fáceis de explicar: não é a observação da cor de uma meia que determina a cor da outra, ela já estava predeterminada. Bell usou esse raciocínio para derivar suas desigualdades. Porém, correlações entre partículas quânticas podem violar essas desigualdades, revelando incompatibilidade com as noções combinadas de realismo e localidade.

O trabalho de Bell despertou a atenção de John Clauser que, com muito custo, conseguiu convencer colegas a disponibilizarem equipamento para que ele fizesse um experimento. Juntamente com Stuart Freedman, Clauser investigou um decaimento atômico que emitia pares de fótons com polarizações correlacionadas. Os fótons eram detectados em posições distantes uma da outra, com analisadores de polarização. Para determinadas orientações dos analisadores, eles conseguiram demonstrar violações de desigualdades de Bell. Porém, no seu experimento, os analisadores eram fixos, o que não afastava a possibilidade de algum sinal ser enviado de um lado ao outro, que poderia “comunicar” a orientação e, com isso, alterar a medida do outro fóton.

No final dos anos 1970, Alain Aspect buscava um tema para sua tese de doutorado e se interessou pelo trabalho de Bell. Ao conversar com o físico irlandês, esse lhe perguntou se ele tinha um emprego: seria muito arriscado para a carreira científica dele trabalhar em assunto tão esotérico… Aspect persistiu e, no início dos anos 1980, com ajuda de Philippe Grangier, Gérard Roger e Jean Dalibard, realizou experimentos similares aos de Freedman e Clauser, mas variando a orientação dos analisadores durante o tempo de voo dos fótons. Novamente, observaram violações das desigualdades, bem superiores às incertezas experimentais.

Nos anos 1990, novas fontes de luz, a partir de cristais não lineares, permitiram aperfeiçoar a geração de pares de fótons quanticamente emaranhados. O grupo de Anton Zeilinger foi um dos principais centros de desenvolvimento dessas fontes, o que permitiu a violação de desigualdades de Bell em condições de estrita não localidade, além de violações de generalizações devidas a Leggett, que demonstram que as correlações da física quântica são mais fortes que até mesmo algumas correlações realistas não locais. Zeilinger tornou-se, também, um dos pioneiros no uso dessas correlações para aplicações em ciência de informação, como a demonstração de teletransporte quântico e a distribuição quântica de chaves criptográficas. Atualmente, emaranhamento quântico é a base para o desenvolvimento de novas tecnologias de sensoriamento, comunicações e processamento de informações.

Dois dos laureados possuem histórico de interação com o Brasil e com cientistas brasileiros. Zeilinger já recebeu vários de nossos pesquisadores para estágios em seu laboratório, com destaque para o pós-doutoramento da profa. Gabriela Barreto Lemos, da UFRJ. Alain Aspect tem conexão especial com o Brasil, desde os anos 1980. Dentre os tópicos investigados por seu grupo, estão os átomos frios e efeitos quânticos a eles relacionados. Ele colabora desde 1988 com grupos de pesquisa da USP, em especial no IFSC – Instituto de Física de São Carlos, onde trabalhos relacionados com características das forças de radiação e suas aplicações foram investigados. Experimentos com átomos frios, realizados enquanto Aspect era pesquisador na École Normale Supérieure, em Paris, tiveram participação de diversos pesquisadores da USP, fato que colaborou bastante para o avanço de laboratórios em nossa Universidade. Já visitou a USP por mais de dez vezes, resultando em artigos científicos em coautoria com nossos pesquisadores. Uma coleção fantástica de aulas proferidas por ele no IFSC pode ser encontrada no YouTube: (

Suas palestras e relacionamento contribuíram de forma marcante para a formação de nossos estudantes, bem como para o estabelecimento de sólidas pontes de conexão para este fascinante tema de pesquisa. Novas visitas para a USP, para os anos de 2023 e 2024, já estão em programação. É um grande prazer ver o justo reconhecimento dos trabalhos de Clauser, Zeilinger e de nosso amigo, Alain Aspect, laureados com o Prêmio Nobel de Física de 2022.

(*) Paulo A. Nussenzveig é professor do Instituto de Física da USP e pró-reitor de Pesquisa e Inovação da USP, e Vanderlei S. Bagnato, professor do Instituto de Física de São Carlos da USP

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