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Carnaval: além de festa, um ato político

Andressa Mueller, Paulo Reyes e Bruno Mello (*) | 21/02/2023 08:30

O Carnaval é um exercício de liberdade em que cada um inventa o seu próprio mundo e as suas próprias regras. É uma reivindicação do corpo no presente que não é proveniente da racionalidade, mas da intuitividade. Essa festa existe em todo lugar e em toda parte, mas, ainda assim, há poucas experiências de sociabilidade tão únicas quanto a do indivíduo que se funde, se perde e se encontra em um mar de outros indivíduos em meio às ruas da cidade.

É uma manifestação extremamente potente e singular, na qual se instaura uma coletividade a partir de uma vivência compartilhada. No Carnaval, o cotidiano, com suas regras e hierarquias, vira de ponta cabeça. E é por suspender as regras habituais e instaurar a inversão das hierarquias que o carnaval é também um ato político.

Historicamente, a festa de Carnaval possui uma origem remota, sendo que, no Brasil, ela segue existindo e se afirmando como uma festa de rua, promovida particularmente por populações marginalizadas. O andar dos blocos na cidade configura um fluxo aberto, imprevisível e desviante. A ideia de ocupar a rua de forma proposital e performática traz em si a preciosidade de um acontecimento efêmero que ressignifica espaços e os seus próprios usos cotidianos.  Nesse sentido, é possível atrelarmos uma dimensão política às brincadeiras do Carnaval, uma vez que o ato corpóreo, em que a folia assume em si uma postura desobediente, lhe assegura a condição performática e política.

Na última década foi possível observar o renascimento e a efervescência dos blocos de Carnaval de rua, principalmente nas capitais mais brancas do Brasil, como Porto Alegre, em que historicamente o preconceito racial, religioso, homofóbico e transfóbico sempre foi um inibidor mais incisivo da festa. Em proporções cada vez mais expressivas, tanto em número de blocos quanto de foliões, o Carnaval de rua porto-alegrense expandiu o calendário anual da festa, impulsionando uma nova organização carnavalesca, econômica e de caráter comunitário.

Inserida nessa recente valorização de brincar o Carnaval, os blocos de rua vêm pautando discussões extremamente relevantes em relação à assédio sexual, preconceito cultural, racismo e LGBTfobia, reflexos de uma abertura social em relação às pautas feministas, queer e decoloniais.

Assim, é possível entendermos essa festa como algo para além de uma experiência lúdica, mas como uma produção urbana que é ao mesmo tempo artística e cultural, logo estética e política. O Carnaval é um espaço de desvio, de transformação do território formal da cidade para um espaço de euforia e de desregramento. É uma potência urbana que reivindica o espaço da rua como espaço de pertencimento dos mais diversos corpos através da performance.

É por meio desta que o corpo se expressa politicamente, não apenas pela linguagem vocal ou escrita, mas pela sua própria presença e persistência. O próprio gesto significa e fala como reivindicação política, especialmente em contexto da união dos corpos, que quando se juntam nas ruas ou em outras formas de espaço público, exercem uma performatividade que afirma e instaura o corpo no meio do campo político.

No âmbito das discussões de gênero e sexualidade, utilizar o Carnaval de rua como campo de análise nos possibilita pensar a cidade não apenas por seu aspecto visível, mas como elo entre sua construção espacial e ideológica, o que orienta a produção do espaço e a territorialização dos corpos. Esse espaço que é constituído pelo corpo, e é o espaço do sensível, se engaja politicamente com o urbano, constituindo diferentes plasticidades e estéticas que orientam e que produzem narrativas de cidade.

Porém, mais importante, o Carnaval é um lugar no espaço-tempo de união de corpos. E quando os corpos queer se encontram, se tornam visíveis e, portanto, portadores de direitos, há espaço para a reconstrução dos discursos que são colocados sobre como, quando e de que forma pessoas LGBTQIA+ podem existir.

Essa discussão até aqui abordada é tema de uma pesquisa de mestrado que busca compreender a relação entre identidade de gênero (mais especificamente as identidades queer) e a apropriação do espaço público urbano enquanto manifestação do direito à cidade.  O objetivo da pesquisa é investigar se ocorre e como ocorre a reivindicação pelo direito à cidade pela população queer no Carnaval de rua e quais implicações estéticas e políticas surgem pela ocupação e pelo aparecimento dos corpos queer brincantes na cidade de Porto Alegre (RS).

Este trabalho vem sendo construído no âmbito das pesquisas do grupo POIESE – Laboratório de Política e Estética Urbanas, dentro da linha de pesquisa Cidade, Cultura e Política, do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR) da UFRGS. Por fim, a realização desta pesquisa só está sendo possível a partir do financiamento da bolsa PROEX/CAPES, instrumento importantíssimo na promoção da pesquisa científica no Brasil.

(*) Andressa Mueller é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Feevale e mestranda no Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR) da UFRGS.
(*) Paulo Reyes é professor do departamento de Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR) da UFRGS.
(*) Bruno Mello é professor do departamento de Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR) da UFRGS.

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