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Convite a uma viagem pelas dicotomias do Brasil

Márcio Bobik Braga (*) | 23/05/2021 09:00


Escrever sobre uma obra literária não é tarefa fácil para quem não é do ramo. A coisa fica ainda mais complicada quando a obra é de qualidade. Como “mero” leitor, meu temor é apresentar uma análise superficial, com todos os vícios de uma interpretação pessoal. Mas, como não tenho outra alternativa, penso em arriscar algumas ideias como crítico amador (no máximo). Minha missão aqui é apresentar o livro de contos A defesa dos dois cavalos e outras histórias, de Alexandre Ganan de Brites Figueiredo (com ilustrações de Tainan Rocha), publicado agora em abril pela Editora Faria e Silva.

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Como professor, vivo da leitura de livros. Mas penso neles não apenas como fonte de conhecimento, trabalho e, claro, diversão, mas também como presentes. Gosto de presentear as pessoas com livros simplesmente pelo fato de que gosto de ganhar livros. Gosto mais ainda de presentear com livros aquelas pessoas que dizem que não têm o hábito de ler, ou que não gostam de ler. Nesses casos, não tem erro: escolho um bom livro de contos.

Explico. Os contos são curtos e por isso evitam aquela ansiedade que leva a parar no meio de um longo capítulo de um longo romance para contar o número de páginas que faltam para o final da história. Como eu disse, os contos são curtos e, quando você percebe, já chegou ao ponto final. Então você vira a página e começa o conto seguinte. Melhor ainda se o conto for divertido ou tenha algum mistério a ser resolvido pelo leitor. Nesse caso, a leitura corre o risco de virar hábito. Penso que, como professor, tenho que incentivar hábitos de leitura e os contos, por conseguirem ser ao mesmo tempo densos e curtos, me ajudam nessa missão.

Penso também em outra vantagem presente nos contos. Os bons, em geral, contam mais de uma história. Existe aquela que está na “superfície” do texto. Sua compreensão é fácil e imediata e, por ser divertida, rouba do leitor uma cara de satisfação quando ele chega sem atalhos ao ponto final. Mas é possível também ler, no conto, histórias ocultas ou cifradas e que revelam alguma “missão” do autor perante seus leitores. Penso que a qualidade do autor está nas formas com que ele incorpora temas de densidade em histórias curtas e divertidas. Como professor, penso que os contos transcendem a diversão, podendo ser fonte de reflexão de inúmeras questões que decorrem das relações humanas ou sociais.  É exatamente esse o caso de A defesa dos dois cavalos e outras histórias.

Volto a ele. Em seus 12 contos (incluí na conta a introdução e deixo para os leitores entenderem o motivo quando lerem o livro), o leitor poderá “viajar” por um Brasil do interior e sentir a graça e a tristeza do pobre caipira, ou a calma e a violência presentes no meio rural. São dicotomias que talvez possam ser enquadradas em uma mais geral: campo versus cidade. Na obra, a cidade se faz presente na memória de quem, aos 18 anos, deixou uma pequena cidade do interior do Estado de São Paulo para estudar na capital e que até hoje mantém na sala de seu apartamento, no centro da cidade grande, um “carro” de bois como lembrança ou como uma presença simbólica de um tempo passado no meio rural.

São contos construídos pelas memórias da infância ou adolescência e que ainda permaneceram no autor. Porém, não se enganem, elas foram modificadas por novas formas de interpretação (Alexandre Ganan é formado em História e Direito pela Universidade de São Paulo, onde obteve o título de Doutor em Ciências). Como afirma o autor, o livro apresenta narrativas que “não são contadas em livros de História, porque a história de pobre, já se disse, se preserva só quando alguém canta”.

São histórias misteriosas, como a do velho sentado no centro de uma cidade morta e em chamas (aqui, a semelhança com outro autor é mera coincidência) ou a do retrato falante de um desconhecido e falecido coronel daqueles que ainda encontramos no País. São histórias descontraídas, como o diálogo entre o professor e seu aluno em uma partida de xadrez que simboliza as regras mal compreendidas de um jogo democrático maior que a sala onde a narrativa acontece. São histórias de “estranhas viagens”, com bois e boiadas, algumas “fantasmagorias”, outras de crimes e vinganças que “existem na memória coletiva e testemunham o grande êxodo rural que marcou a formação do Brasil Moderno” (lembrei-me aqui de Manoel de Barros que, ao contar sobre sua infância, escreveu: “tudo que não invento é falso”).

Não arrisco escrever mais pois, como disse no início deste texto, não sou crítico literário e sequer ficcionista. Apresento-me aqui apenas como um dentre os inúmeros leitores que adoram ler e presentear as pessoas com livros de contos. Como leitor, mesmo tendo um viés (preconceito bobo) que me faz preferir livros de autores mortos, ainda me impressiono com a qualidade das obras dos escritores vivos. Como professor, tenho mais uma opção de leitura para meus “alunos”: depois da primeira página de A defesa dos dois cavalos e outras histórias, quando você piscar o olho, já estará no final do último conto e com vontade de ler mais.

A defesa dos dois cavalos e outras histórias, de Alexandre Ganan, São Paulo, Editora Faria e Silva, 2021, 128 págs.

(*) Márcio Bobik Braga é professor livre-docente da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da USP

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