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Critérios para a reforma das carreiras do funcionalismo público

Critérios para a reforma das carreiras do funcionalismo público

Renata Ovenhausen Albernaz e Ariston Azevedo (*) | 19/10/2022 13:30

No elenco de reformas aventadas pelo governo federal está a que visa à reestruturação de carreiras do funcionalismo público, sob o argumento do enxugamento da “máquina pública” e da necessidade do aumento de sua produtividade, já que o Estado deve ser mínimo em tamanho, restrito em áreas de atuação e eficiente naquilo que faz. Essa proposta envolverá medidas como: redução no número de carreiras públicas e generalização de algumas delas; ampliação do tempo total das carreiras; redução dos salários iniciais, em conformidade ao mercado; extensão da amplitude salarial; mudanças nas regras de estabilidade; e rigorosas medidas de desempenho para o estágio probatório e a ascensão aos cargos.

O tema lida não só com direitos de servidores, mas com impactos na capacidade de ação do Estado. Afinal, para criar competências estatais são necessários investimentos sociais, e manejar a qualidade do trabalho em prol do desenvolvimento inteligente e duradouro do país é o desafio da gestão pública contemporânea. Fomentar a criação e evitar a perda de talentos públicos é crucial ao país. Qual será, então, a estratégia da proposta de Reforma das Carreiras do Funcionalismo Público do governo?

Isso exige ampla discussão democrática, pois afetará a composição do corpo do Estado e, assim, sua potência de ação.

Os Planos de Carreira no serviço público são instrumentos desse manejo. Hoje, a matéria é texto constitucional (previsto no artigo 39), e a intenção desses planos é, com a ascensão de cargos e, consequentemente, de remuneração, incentivar o servidor à eficiência, à produtividade e à qualidade no trabalho. Mesmo que privilégios corporativos injustos precisem ser revistos, o primeiro eixo a orientar uma reforma nas carreiras, sem violar seu fim institucional e constitucional, é ampliar a qualidade do serviço, atentando, no sistema republicano, ao reforço do critério meritocrático e às regras universalistas de acesso às oportunidades.

Mas qual é essa eficiência, produtividade e qualidade? O nível da exigência aos Estados é o que as deve definir. Eli Diniz, no texto Governabilidade, Democracia e Reforma do Estado, aponta que a governabilidade estatal eficiente inclui não só critérios econômicos, mas também a qualidade política – ou a forma mais ou menos democrática como o governo exerce o poder – e a qualidade social – em critérios que, além da renda, incrementem o acesso à justiça, à igualdade e aos direitos humanos. E essa governabilidade enreda a capacidade de decisão com a de implementação, já que, segundo a autora, a falência do poder público, no Brasil, decorre, justamente, de um descompasso entre a hiperatividade decisória e a impotência executiva. Contudo, eficiência específica ao domínio público, seguindo as ideias de Diniz, além de rigor técnico, incluiria o rigor democrático, ou seja, o êxito em destravar obstáculos de implementação por meio de oitiva, negociação e articulação social do Estado no consenso, consentimento e colaboração dos afetados. Aliás, deve-se investigar se tal “falência do poder público” não estaria relacionada mais ao baixo rigor democrático dos seus agentes do que ao seu rigor técnico propriamente. Uma análise de como ambas as exigências de rigor incidem nas diferentes atribuições públicas poderia configurar um elemento a partir do qual se desenhariam os Planos de Carreira na Reforma.

Além da questão elementar das carreiras, outro ponto é o do Sistema de Carreiras Públicas, que deve seguir critérios de justiça, coordenação e eficácia. Resgatando uma análise histórica das reformas na organização de carreiras, Graeff e Cruz, no texto A Organização de Carreiras do Poder Executivo da Administração Pública Federal Brasileira, verificaram uma trajetória não linear que envolveu desde políticas para fortalecer um Sistema Geral das Carreiras do Executivo Federal – como foram os casos da Lei n.° 5.645/70, que aprovou o Plano de Classificação de Cargos (PCC), e da tentativa de sistematização pelo Comitê Coordenador da Reforma Administrativa, nos anos 1990 – até políticas para individualizar carreiras – como foi, a partir de 1984, a organização das “atividades típicas de Estado” (Segurança Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização de Tributos Federais e Contribuições Previdenciárias, Ministério Público, etc.) e das carreiras criadas, em um modelo tipicamente autárquico, pelas Agências Reguladoras, e que acabou se disseminando por outras autarquias.

A opção de um sistema mais geral objetiva melhorar a coordenação e a justiça entre as carreiras (evitando discrepâncias salarias entre atividades similares em cargos de carreiras distintas), otimizar a estrutura (minimizando a redundância de cargos) e, com o uso de denominações mais genéricas, ampliar o poder da gestão na mobilidade dos agentes públicos e na flexibilidade de ação. Já um sistema de carreiras mais específicas reforça a especialização do serviço, e, assim, seu rigor técnico adapta a carreira aos padrões de oferta da mão de obra (atraindo mão de obra rara em carreiras atraentes) e permite a criação de carreiras exatamente adequadas à necessidade. A opção por uma ou outra orientação do sistema de carreiras, ou por uma mescla entre eles, além desses objetivos, depende de estudos sobre o serviço público, as demandas que ele deve atender e as condições atuais e futuras de sua oferta.

Não há solução trivial, pois o argumento de minimizar os custos e a máquina e, ainda, aumentar a produtividade do Estado ou é paradoxal ou exige soluções por demais sofisticadas. Diferenciar os custos que potencializam a ação estatal, e que precisam ser incrementados, dos custos que mais oneram do que rendem impactos; discutir a qualidade do Estado que se substancia na qualidade exigida (e condicionada!) do seu corpo de agentes; armar uma solução justa no Sistema de Carreiras e na relação deste com o regime dos trabalhadores do mercado são questões de fundo que exigem análises rigorosas, discussões democráticas além da capacidade dos agentes públicos que já criamos.

(*) Renata Ovenhausen Albernaz é doutora em Filosofia e Teoria do Direito, professora da Escola de Administração.

(*) Ariston Azevedo é doutor em Sociologia Política, professor da Escola de Administração.

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