Das prateleiras ao oceano
A visita ao supermercado pode ser angustiante se imaginarmos que parte de todas aquelas embalagens que enchem as prateleiras, e os nossos carrinhos, vão ser descartadas de forma inadequada, incluindo 4% do plástico que vai chegar ao oceano. Basicamente, esse material barato, leve, não corrosivo e flexível criou uma gama de produtos que vão de embalagens de alimentos, passam por vestimentas e calçados, equipamentos hospitalares, até componentes de prédios, automóveis e satélites. Abrir mão de tudo isso é tão urgente quanto desafiador.
O mundo conheceu a revolução dos plásticos na década de 1950 e, de lá para cá, apesar dos avanços, os problemas se acumularam e já colocam em risco o meio ambiente e a saúde humana. Um estudo publicado este ano na Science Direct descreve a primeira detecção de microplásticos em pulmões humanos, corroborando a presença dessas partículas no ar e no sangue humano! Outros estudos avaliam a correlação de microplásticos com doenças inflamatórias, além do impacto que causam na saúde de animais marinhos, na poluição de mangues, rios e praias, a exemplo dos milhares de embalagens plásticas vindas de toda parte do mundo e que chegam à costa brasileira, apesar da Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios proibir o descarte de lixo.
A imagem do canudo de plástico sendo retirado da narina da tartaruga Lora em 2019 ficou no imaginário popular, sensibilizando sobre a necessidade de reduzir ou evitar o consumo de canudos, ajudando a aprovar leis que proibiram seu consumo e incentivando a produção de similares feitos com papel ou material biodegradável. O canudo, no entanto, é o menor dos problemas.
São vários os vilões da poluição marinha: fragmentos de plásticos moles e duros, pellets (esferas plásticas), bitucas de cigarro, isopor, tampas, lacres, argolas e hastes de cotonetes, segundo o Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil de 2021, organizado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Há ainda o abandono de redes de pesca e resíduos - como medicamentos e agrotóxicos - que não são degradados no tratamento da água e que acabam no mar.
Se a pandemia reduziu alguns impactos ambientais por conta do esvaziamento das cidades, ela também fez explodir o uso de plásticos e máscaras descartáveis, prejudicando ainda mais a saúde do planeta. A geração de lixo hospitalar distendeu 20% no Brasil em relação a 2019, de acordo com dados do Atlas do Plástico. A Abrelpe avalia que a geração média de lixo hospitalar por cada paciente internado para tratamento de Covid-19 foi de 7,5 kg por dia, sete vezes maior do que a média diária de produção de lixo por habitante, que é de 1,1kg! Não são poucas as imagens que circulam nas redes sociais com animais marinhos embrenhados a máscaras descartadas de forma errada, apenas para citar um impacto direto.
O lixo que nos conecta ao oceano
Quando o lixo chega ao oceano é sinal de que o descarte foi inapropriado. No Brasil, cerca de 40% dos resíduos sólidos urbanos produzidos vão parar em áreas inadequadas. Além disso, parte ínfima do lixo é reciclada, apesar dos avanços na tecnologia de reaproveitamento de materiais. Tomando como exemplo a cidade brasileira que mais recicla – Florianópolis - apenas 9% do total de resíduos é reaproveitado! Não se trata, portanto, apenas de (ir)responsabilidade individual. Faltam investimentos governamentais (como argumentado por Ana Paula Bortoleto em artigo publicado no Jornal da Unicamp) que garantam a coleta universal e adequada dos resíduos e políticas de incentivo à reciclagem e à substituição de materiais altamente poluidores como o plástico e o isopor.
No ambiente marinho, 75% do lixo encontrado é composto por plástico, estima estudo publicado em 2019 na Nature. O principal tipo de plástico encontrado no mar é o polietileno (usado em garrafas PET, embalagens e sacolas) e o polipropileno (presente em copos, cadeiras e brinquedos). Esse enorme volume plástico sofre degradação por impactos físicos (ondas, raios UV e calor, por exemplo), químicos (sal, acidez) e mineralização (transformação do carbono em gás carbônico e compostos inorgânicos) e é fragmentado em partículas menores. Resíduos orgânicos, carcaças de animais, algas e microrganismos – a chamada neve marinha – se prendem a essas micro e nanopartículas e são arrastadas para o fundo do oceano. Essa neve com microplásticos afeta o ciclo do oxigênio e do carbono e coloca em risco a cadeia alimentar bentônica (animais que vivem no fundo do oceano) que dependem desses nutrientes.
Um extenso diagnóstico sobre a descrição, origem, impactos, ações e desafios de resíduos sólidos no oceano, está disponível no livro Lixo nos mares: do entendimento à solução. A publicação online e gratuita foi organizada pelo Instituto Oceanográfico da USP em 2020. Outro documento que examina a questão no país é o Plano nacional de combate ao lixo no mar, lançado em 2019 pelo Ministério do Meio Ambiente, com propostas de ações integradas. O Plano, por ora, conseguiu organizar 443 mutirões para a retirada de 266 toneladas de lixo de praias e rios. A agenda para 2022, no entanto, está indisponível. Para colocar em prática as ações propostas, o Plano precisa de articulação entre estados e municípios para fomentar ações estruturantes e integradoras que coloquem o Brasil em diálogo com iniciativas internacionais.
Desintoxicação plástica
Transformar essa relação de dependência de plásticos não é elementar. Passamos de uma produção anual mundial de 30 milhões de toneladas em 1988 para chocantes 359 milhões em 2018 e com previsão de dobrar em 20 anos! Buscar alternativas é urgente.
Além de reciclar e reduzir o uso é possível apostar em alternativas promissoras desenvolvidas pela ciência como o bioplástico. Para produzi-lo, resinas sintéticas ou produzidas a partir de glúten de trigo, mandioca, casca de batata e banana ou até ácido lático têm sido testadas e utilizadas. Certamente seu tempo de degradação é muito menor do que os estimados 450 anos necessários para decompor uma garrafa plástica na natureza. Mesmo assim, estudos propõem um olhar crítico sobre o consumo desenfreado de materiais considerados descartáveis. Por isso é preciso investir na chamada economia circular em que os produtos consumidos se tornem matéria-prima para novos produtos ou subprodutos.
Em 2022, a organização Breaking Free from Plastic divulgou o terceiro ranking de empresas que mais poluem com plásticos no mundo. Em 2022, as quatro empresas no topo da lista, responsáveis pela produção de meia tonelada de embalagens plásticas, são a Coca-Cola, a Pepsico, a Nestlé e a Unilever. A divulgação do ranking tem pressionado o setor a responder com responsabilidade social e ambiental, a investir na produção de garrafas PET a partir de material reciclado. Outro resultado é o envolvimento dessas empresas na capacitação de coletores e em programas de recolhimento e destinação apropriados, como forma de minimizar o impacto no meio ambiente.
Nesse contexto, o que as universidades podem fazer para mudar esse cenário, além de investir em ciência e tecnologia que fortaleçam os 4 Rs – reduza, reutilize, recicle e repense? Criado em 2010, o Ranking Mundial de Universidades GreenMetric é um incentivo para que as universidades pensem em criar condições mais sustentáveis que possam servir de modelo para a sociedade. No Brasil existem 40 listadas no ranking internacional e a Unicamp é a 3a do país (atrás da USP e da Universidade de Lavras) e a 7ª da América Latina. O ranking considera ações de reciclagem de lixo, energias renováveis e eficiência energética, compensação da pegada de carbono para mitigar os efeitos das mudanças climáticas, redução do consumo de água, uso de transporte com energia verde, a proteção do meio ambiente, a infraestrutura, além da oferta de cursos relacionados a práticas sustentáveis.
Em meio a esse mar de plástico há muito que fazer. Conhecer e valorizar iniciativas que mobilizem o uso de materiais biodegradáveis, que promovam a diminuição ou o consumo consciente e invistam na economia circular e na reciclagem de materiais são passos para promover mudanças culturais e reduzir o sentimento de impotência diante deste desafio.
(*)Germana Barata é pesquisadora do Laboratório de estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (nudecri) e membro do Comitê de Assessoramento da Década do Oceano no Brasil. email: germana@unicamp.br
(*) Isabela Tosta é aluna do Instituto de Biologia, bolsista BAS e atua na divulgação científica da Década do Oceano no blog Um Oceano.
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