Produtivismo e interseccionalidade na pós-graduação
Há quatro anos, escrevi um artigo sobre produtivismo acadêmico e ética neoliberal, no qual chamava a atenção para o modo como a formação na pós-graduação strictu sensu estava marcada por processos de subjetivação que afirmavam o empreendedorismo de si, o individualismo e a meritocracia, além de legitimarem desigualdades raciais, de classe, gênero e inclusão, indo na direção oposta da ciência produzida coletivamente e da formação crítica. Atualmente, os programas de pós-graduação enfrentam desafios muito maiores, como os cortes em financiamentos, o ensino remoto, as questões de saúde mental geradas pela pandemia e o aumento das desigualdades sociais e econômicas, que afetam, principalmente, o corpo discente.
Repensar nossas práticas produtivistas, nesse contexto, passou a ser condição de permanência para estudantes, principalmente nos programas que contam com políticas afirmativas. Neste momento, precisamos estar atentos para reinventarmos nosso trabalho e pensarmos por qual pós-graduação estamos lutando.
Pelo projeto Fotografia e pesquisa-intervenção: construção de estratégias para a produção inventiva na pós-graduação, conversamos com dez mestrandos e doutorandos de cinco áreas do conhecimento e pedimos que fotografassem aquilo que, de suas pesquisas, não era reconhecido pelos modos de avaliação produtivistas. Nosso objetivo era deslocar a atenção para o invisível das pesquisas, considerando que os modelos de avaliação tendem a enfatizar mais o plano da recognição, no qual os resultados ganham mais valor do que os processos. Aprender a pesquisar envolve experiências disruptivas que passam despercebidas pelos nossos modos de ver e que podem ter relação tanto com o objeto de pesquisa em si quanto com o lugar que certos corpos ocupam na Universidade.
Algumas das narrativas trazidas pelos estudantes na pesquisa nos levaram a estas análises, como a de Letícia (nome fictício): “Para mim, o mais difícil não são as disciplinas, as leituras ou a escrita, mas a sensação de que este lugar não é para as pessoas negras. Não me reconheço nas teorias de autores brancos europeus nem reconheço a comunidade da qual eu venho no que estudo em sala de aula. Passo a maior parte do tempo tendo que me confrontar com o racismo institucional”.
O acirramento das desigualdades de classe e de gênero neste período também ficou evidente. Estudantes com baixa renda familiar precisaram trabalhar, diminuindo o tempo dedicado aos estudos, ou ficaram desempregados, tendo que lidar com questões de saúde mental e com a escassez de recursos domésticos necessários para o modelo remoto. Muitas mulheres passaram a ocupar a posição de cuidadoras de familiares. Além disso, algumas pós-graduandas tiveram suas atividades deslocadas para o cuidado e a educação dos filhos pequenos em casa, o que, em geral, era entendido como um problema pessoal para a sua produtividade, quando deveria ser uma questão abordada a partir de uma política coletiva do cuidado.
Na ocasião em que realizamos as entrevistas, Júlia (nome fictício) trouxe um relato sobre esse ponto: “Um de nossos professores disse abertamente que nunca mais selecionaria uma mulher após sua primeira orientanda engravidar. E ela nem havia desfrutado da licença maternidade completa”. Lidar com processos de subjetivação que individualizam a produção acadêmica e a responsabilidade sobre o cuidado parece ser um paradoxo violento experimentado por mulheres na ciência. Ainda sobre essa temática, Carolina (nome fictício) produziu a fotografia que abre como capa este artigo e falou da dificuldade de cuidar de si mesma e das plantas de casa.
Ao naturalizar a competitividade e o individualismo, as políticas produtivistas criam uma associação direta entre produção de conhecimento e reconhecimento pessoal. Ainda que o fazer científico envolva uma série de agenciamentos coletivos, as recompensas são individuais, garantidas pela boa apresentação do próprio currículo em seleções, concursos, editais e progressões.
Algo parecido se passa com aqueles que publicam menos por inúmeras razões, dentre elas questões que interseccionam diferentes tipos de desigualdades sociais. O padrão de avaliação e recompensa produtivista, entretanto, legitima o sentimento de inadequação acadêmica individual e pode ser, inclusive, explorado através de estratégias específicas, como nos narra Guilherme (nome fictício): “Tinha um mural no corredor (da Universidade) no qual ficavam fixadas as publicações de cada aluno. Nós o chamávamos de “mural da vergonha, pois os que produziam menos ficavam expostos”.
Em outro programa, encontramos o relato de Lívia (nome fictício) sobre a existência de uma bolsa-prêmio no seu programa, para a qual poderiam concorrer somente aqueles candidatos que tivessem publicações em revistas A1: “Nós torcíamos para que os artigos dos colegas não fossem publicados”. Tudo isso não se faz sem um prejuízo à saúde mental dos estudantes, que passam a necessitar de psicotrópicos para ajustar o sono, a concentração e a ansiedade, principalmente após o advento do isolamento social.
A pergunta que se coloca diante desses questionamentos é, em geral: como garantir um mínimo financiamento em tempos de investimentos escassos na ciência sem aceitar as políticas produtivistas?
Talvez, um primeiro movimento seja reconhecer a violência de reproduzir uma política individualista e elitizada na pós-graduação. Um segundo movimento talvez possa ser estarmos abertos às questões amplas que os estudantes trazem sobre a formação na pós-graduação, especialmente quando eles se negam a permanecer na posição individualizada de “incapazes” ou improdutivos, reorientando as práticas produtivistas de produção de subjetividade e permitindo que os docentes também repensem suas relações consigo mesmos. Por fim, devemos pensar em políticas de equidade na pós-graduação, mais do que em uma escala de premiação, tendo como objetivo a manutenção da universidade como um espaço crítico e para todos.
(*) Vanessa Maurente é professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional, vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional e professora associada do Programa de Pós-graduação em Informática na Educação. l.
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