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Os indígenas ontem e hoje: sob a perspectiva ameríndia

Emerson Souza (*) | 23/04/2022 08:16

Nunca é tarde para refletir sobre a perspectiva indígena. Nunca é tarde para compreender o bem viver dos povos ameríndios do Brasil. Muitos povos deixaram de existir na barbárie brasileira em cinco séculos. Éramos em torno de oito milhões de indígenas em várias etnias até a invasão. Somos, hoje, pouco menos de um milhão de indígenas que se dividem de norte a sul em 305 etnias, 274 línguas e pelo menos 80 povos vivendo de forma isolada nas grandes matas do Brasil. As fronteiras do Brasil possuem uma diversidade enorme e desconhecida por grande parte da população. Os indígenas isolados que vivem no mundo contemporâneo não existem para grande parte da sociedade. Que sorte a deles. Por outro lado, é um perigo em uma sociedade com fome de capitalismo.

A diversidade de povos e línguas destoa da realidade de povos indígenas que vivem isolados nas grandes cidades. Existem nas grandes cidades muitos povos vivendo em contexto de cidades. Os indígenas ocuparam diversas realidades, diversas cidades, bairros e bolsões de pobreza na grande metrópole. Enfim, estamos em todas as partes do Brasil. Mas o imaginário construído pela sociedade brasileira, propagado por muitos, é de um indígena “atrasado”, “selvagem”, “não civilizado” e distante de tudo e todos. Existe uma imagem construída que necessitamos repensar nos dias de hoje.

Somos sim, indígenas com olhos puxados e cabelos lisos, mas o que temos é muito mais que isso, existe uma pluralidade de povos. A multiplicidade de culturas e de realidades indígenas possui grafismos, arte, religião, dança, cantos e encantos, alimentação milenar e comidas tradicionais, línguas e troncos linguísticos diversos, literatura, tecnologia na construção de casas, entre outras características desconhecidas dos espaços públicos. É preciso descolonizar o currículo, a educação, os espaços públicos, as universidades, os livros e muitas outras ações que não refletem sobre a realidade e diversidade cultural de nosso país.

Nós, povos indígenas, com nosso modo de ser, vivemos o hoje com um olhar voltado para o passado. Buscamos reconstruir muitos caminhos percorridos por nossos antepassados. Estamos reconstruindo a história de muitos povos sob a perspectiva ameríndia. Existem muitas outras histórias sobre os povos indígenas, mas o olhar etnocêntrico, eurocêntrico e ocidental continua como uma alternativa que destrói outros modos de existir.

A perspectiva ocidental ficou impregnada no imaginário da sociedade não indígena. E necessitamos reorganizar esse olhar sob a ótica de muitos povos. Portanto, o Brasil necessita refletir sobre a diversidade de seus povos, de suas culturas e de suas terras.

Para isso, precisamos refletir muito profundamente sobre como podemos, de fato, mobilizar outros olhares e novos modos de compreender nossa cultura. Um dos caminhos importantes é discutir muito seriamente a implantação de políticas públicas que se voltem a favor dos povos indígenas. A Lei 11.645/08 é um caminho importante para a educação, discute de forma sistemática a implementação de uma lei que fortalece a educação quando sugere descolonizar o currículo, e de fato mostrar as realidades indígenas de norte a sul. Afinal, as escolas públicas e privadas de todo o Brasil necessitarão reformular as velhas práticas pedagógicas e refletir profundamente sobre a pedagogia utilizada nos últimos anos em seus ambientes.

As comunidades ameríndias de todo o Brasil possuem suas próprias convenções e lutas e isso só fortalece os educadores atentos às novas ações no ambiente escolar. Portanto é preciso compreender que os indígenas possuem suas próprias questões jurídicas que permeiam suas muitas multiplicidades. Entender e compreender a Lei 11.645/08 é importante e necessário em tempos difíceis para os muitos povos indígenas. Compreender os artigos constitucionais 231 e 232 como um importante caminho para compreender o ordenamento jurídico, observando a existência de uma Constituição que garante essa discussão em todos os ambientes públicos e privados do País.

Enfim, nós, povos indígenas de todo o Brasil, lutamos para continuar existindo, seja lá onde quer que estejamos; nós, povos indígenas, necessitamos ser reconhecidos como povos do hoje que refletem sobre seu passado e que discutem novas ações do futuro. E por permanecermos vivos, lutamos para a construção de novas políticas públicas que favoreçam não só aos povos indígenas, mas a toda uma sociedade que necessita conhecer novas existências. Esse apagamento e cegueira histórica sugerem novas ações e neste sentido a comunidade acadêmica e suas ciências precisam observar em suas ações a presença indígena. Descolonizar o ambiente acadêmico é parte de um processo importante quando recebe novos corpos e a ciência que não vou dizer ser nova, pois não é. São milenares e passaram de geração e podem e devem construir o novo neste mundo permeado por destruição de ecossistemas, florestas, rios, pássaros, entre outras destruições frente ao avanço capitalista. Como viver entre esses extremos será possível hoje?

Os povos indígenas de todo o Brasil se mobilizam em várias lutas, a fim de que essa realidade seja de fato compreendida. As muitas mobilizações buscam permear uma discussão que esteja em sintonia com um novo modo de ser. Neste sentido, organizações indígenas percorrem as muitas cidades do Brasil levando suas questões, que envolvem saúde, educação, demarcação de terras. Buscam um lugar ao sol frente ao avanço do agronegócio, entre outras formas de se propagar a ideia de integrá-los à sociedade nacional. Houve a releitura de velhas políticas de integração e, sendo assim, há necessidade de cada vez mais os povos indígenas intensificarem muitas outras ações contra o desmonte de seus direitos.

Como indígena, educador e antropólogo sinto a necessidade de muitas ações para a defesa dos direitos indígenas e a universidade pode e deve sempre fortalecer essas ações. Exemplo importante tem dado o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da FFLCH-USP, que já conta com dez indígenas no mestrado e doutorado; a Unicamp e seu vestibular indígenas e seus muitos indígenas em vários cursos; e a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com o Programa Pindorama, que já formou pelo menos 90 indígenas que vivem em contexto de cidade em São Paulo, capital e sua região metropolitana. São ações importantes para fortalecer a luta dos movimentos indígenas no Brasil, trazendo um novo olhar às universidades públicas e privadas, mas que irão refletir muito profundamente nas várias escolas indígenas e não indígenas. Novos pesquisadores e nova ciência a serviço de uma sociedade plural, diversa e que muito precisa compreender sobre os muitos conhecimentos indígenas.

(*) Emerson Souza, Guarani Nhandeva é doutorando da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

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