A escrita da vivência em Dismatria
“Às vezes devemos fazer algumas viagens literárias para entendermos a nós mesmos” é o que afirma Igiaba Scego, em entrevista, ao comentar sua trajetória como escritora. Sua viagem literária inicia como leitora de literatura espanhola e latino-americana, atravessa o Brasil e chega, então, a muitos países africanos. Para descobrir mais sobre si e sobre sua ancestralidade, a escritora lança um olhar para fora, para países do além-mar, em busca de referências para compreender o seu próprio processo de subjetivação, ou seja, de tornar-se sujeito.
A escrita aparece na vida de Scego como consequência de sua trajetória. Ela, que antes de escritora se denomina uma colheitadeira de histórias, busca compartilhar, em seus contos, romances e artigos, o mundo e as realidades que observa ao seu redor. Suban Igiaba Alí Omar Scego, que de acordo com as normativas italianas foi registrada somente Igiaba Scego, é uma filha da diáspora somali nascida em Roma em 1974; seus pais, em 1969, tiveram de buscar acolhimento em solo italiano ao fugirem de um regime ditatorial instaurado na Somália.
Em 2005, Scego lançou o conto intitulado Dismatria, que se encontra na coletânea Pecore nere (Ovelhas negras). O conto, ainda sem tradução em língua portuguesa, explora a história de uma família de refugiados somalis que vive em Roma, na Itália, ilustrando os conflitos entre mãe e filha advindos de suas diferentes visões a respeito de nação e de futuro. A história se concentra na angústia sentida pela protagonista-narradora no dia em que ela deve contar para a sua mãe que pretende comprar um apartamento para si e dentro dele deseja colocar um armário para não precisar mais guardar suas roupas em malas.
Através de digressões e reflexões acompanhamos as vivências da protagonista-narradora enquanto mulher, negra, muçulmana e filha de imigrantes na sociedade italiana.
A família da protagonista-narradora, durante muitos anos, rejeita a compra de armários e de uma casa, mantendo todos os seus pertences em malas e morando de aluguel, pois vivem à espera de um retorno à sua terra natal. No entanto, aquela Somália que conheceram já não existe mais – (in)conscientemente, todos sabem -, mas vivem com a esperança de que ela volte a existir. Nesse sentido, as malas representam a saudade, ao mesmo tempo que representam a incompletude, pois há o apego a essa terra, agora, idealizada, e à dificuldade de fincar pés em outras terras, como a Itália. O armário aparece como representante do ponto de encontro entre os dois países, entre as duas culturas, entre as duas (ou mais) identidades possíveis da protagonista-narradora. O armário se coloca, então, não para negar a falta, a ausência dessa terra natal, mas para estabelecer um ponto de parada, uma estabilidade nessa outra terra que também pertence a essa família.
Nesse conto, Igiaba Scego, por meio das metáforas das malas e do armário elabora o dilema vivenciado por diversas pessoas: o (não) pertencimento. Dilema esse que a própria escritora experienciou, pois durante muitos anos não sabia se se dizia italiana ou somali, já que era vista como muito somali para ser somente italiana e muito italiana para ser somente somali.
Dessa forma, na escrita (deste conto e de outros trabalhos), Scego encontrou espaço para dar vazão às suas dúvidas e angústias e ao mesmo tempo encontrar outros sujeitos em situações semelhantes às suas e ser também participante nessa rede de criações narrativas pós-coloniais que desacomoda a hegemonia literária e desloca noções preestabelecidas de ficção.
As histórias de vida de Igiaba Scego e da protagonista-narradora se aproximam em muitos pontos, assim como as histórias de vida de tantas outras pessoas são possíveis de se aproximar àquela da protagonista; no entanto, de maneira equivalente, as experiências familiares de Scego se afastam daquelas narradas no conto, confirmando a ficcionalidade de Dismatria. É uma escrita ficcional atravessada pela viagem literária e localização social de sua autora.
Scego afirma, em entrevista, que “[…] uma pessoa é [composta] de tantas coisas que carrega em si, é a sua origem, mas é também as suas paixões”. Ou seja, a origem e a história familiar ocupam um papel importante na formação do sujeito, são parte, dessa forma, da nossa bagagem cultural ou são uma de nossas malas, para aludir ao conto; mas também as paixões, os amores, os desejos constituem a subjetivação, aquilo que é da ordem da escolha, em outras palavras, os nossos armários são partes significativas do nosso ser [sujeito]. As trajetórias do passado, as escolhas do presente e as narrativas do futuro se entrelaçam constantemente nessa escrevivência dos seres, assim como acontece com a família do conto, mas também com a família de Igiaba Scego e com tantas outras famílias ao redor do mundo.
(*) Luiza Garibaldi é licenciada em Letras – Língua Italiana e Literatura de Língua Italiana pela UFRGS e professora de italiano em seu próprio curso: Identità Italiana.