Déficit calórico, comportamento alimentar e mecanismos neurobiológicos
O déficit calórico ou energético (“coma menos, gaste mais”) é uma condição fundamental para o emagrecimento, mas tem recebido severas críticas nos últimos anos. Alega-se, sobretudo, que os pacientes não aderem ao plano alimentar de baixa caloria e desistem do tratamento. Ainda, argumenta-se que o metabolismo fica lento, que ocorre perda de massa muscular e que o déficit calórico causa transtorno alimentar. Pois bem, existem mecanismos comportamentais e neurobiológicos que nos ajudam a entender essa complexa e polêmica temática.
Você tem um animal de estimação em casa, como cães e/ou gatos? Se sim, vai observar que esses animais buscam alimentos (nesse caso, a ração comercial) porque têm fome, ou seja, uma sensação fisiológica na qual o organismo percebe que necessita de alimentos (energia e nutrientes) para manter suas atividades inerentes à vida. Já nós, seres humanos, buscamos alimentos por fome e apetite. O apetite nos remete ao desejo de comer algo, à vontade de comer alguma coisa ou à preferência por determinados alimentos.
Claro, por vezes, corrompemos nossos animais de estimação oferecendo petiscos ou restos de comida, mas nós, seres humanos, frequentemente comemos sem existir a sensação de fome. Quer dizer, comemos em comemoração com amigos, em encontros familiares, em reunião de negócios. Também comemos quando estamos tristes, deprimidos, ansiosos, irritados e, até mesmo, alegres, contentes, felizes, eufóricos. Nesse caso, estamos falando do “comer hedônico”, como descrito em uma publicação na Current Obesity Reports. Esse “comer emocional” é uma espécie de comer por recompensa e prazer.
Além disso, os seres humanos vivem em ambientes obesogênicos, ou seja, que contribuem ou oferecem oportunidade para a obesidade. Os principais fatores obesogênicos são: vida urbana com comodidade de transporte e locomoção; inatividade física e imobilidade relacionada à TV e internet (computadores, notebooks, tablets e smartphones); e alimentação rápida (fast food), com opções hiperpalatáveis e altamente calóricas.
A pandemia de covid-19, causada pelo vírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS-CoV-2), também pode ter favorecido o sobrepeso e a obesidade. Por exemplo, muitas pessoas desenvolveram atividades de home office (escritório em casa), enquanto alunos assistiam a aulas online (ambiente virtual), o que reduziu grandemente a sua atividade física. Outros, por sua vez, recorreram à tele-entrega de pizzas, hambúrgueres, batatas fritas, nuggets, milk-shakes e sorvetes. Dessa forma, a redução do gasto calórico pela falta de atividade física e o sedentarismo, somados ao consumo calórico excessivo, contribuem para o sobrepeso e a obesidade.
Esses processos sofrem influência direta do hipotálamo, que desempenha papel central na regulação da ingestão alimentar. O núcleo arqueado do hipotálamo sofre ação de peptídeos anorexígenos, ou seja, peptídeos que inibem a vontade de comer. Entre eles, podemos destacar o pró-opiomelanocortina (POMC) e o transcrito regulado por cocaína e anfetamina (CART). Os neurônios POMC/CART, via o hormônio estimulante de melanócitos (α-MSH), interagem com o núcleo paraventricular hipotalâmico, reduzindo a ingestão alimentar e aumentando a saciedade. Existem, também, peptídeos orexígenos, quer dizer, aqueles que estimulam a vontade de comer. O neuropeptídeo Y (NPY) e a proteína relacionada ao gene Agouti (AGRP) são os principais representantes, cujo ações estimulatórias são mediadas pelo NPY e ácido γ-aminobutírico (GABA).
Quando reduzimos a ingestão alimentar e “passamos fome”, observamos um aumento nos níveis circulantes de grelina. Grelina é um agente orexígeno ou “hormônio da fome”, produzido pelo estômago (bem como intestino, hipotálamo e placenta), que se liga aos neurônios NPY/AGRP do núcleo arqueado. Estes, por sua vez, enviam sinais ao núcleo paraventricular para aumentar a ingestão alimentar. Além disso, grelina inibe POMC, corroborando com a fome. Já leptina, produzida pelo tecido adiposo branco (e, em menor grau, pelo tecido adiposo marrom e placenta), interage com o hipotálamo, causando hiperpolarização dos neurônios NPY/AGRP, o que reduz GABA e, consequentemente, diminui a ingestão alimentar. Esse “hormônio da saciedade” também pode estimular POMC/CART, reduzindo a ingestão alimentar.
Com base nisso, cabem os questionamentos: o déficit calórico não funciona para emagrecer ou existem obstáculos inerentes à vida de relação das pessoas que precisam ser rompidos para se alcançarem determinadas metas?
Quer dizer, se não podemos excluir totalmente os fatores obesogênicos que coexistem com a população, então não deveríamos aprender a lidar com as adversidades da vida? Ao mesmo tempo, somos simples calculadoras que podem contabilizar “coma menos, gaste mais” para emagrecer ou somos um sistema neurobiológico complexo? Em outras palavras, como corrigir um mau funcionamento ou uma desregulação dos mecanismos neurobiológicos que controlam a fome e a saciedade?
Há cerca de 200 mil anos, nossos ancestrais comuns eram nômades e se alimentavam de frutos e raízes, bem como dependiam da caça e da pesca. Devido às condições climáticas, deslocamentos pelos continentes e disputas territoriais, havia períodos de pouca ou inexistente oferta de alimentos. Dessa forma, nosso corpo teria aprendido a armazenar energia (triglicerídeos no tecido adiposo) para resistir ao déficit calórico imposto pelo ambiente. Alega-se, portanto, que o déficit calórico imposto durante as dietas de emagrecimento poderia reduzir o metabolismo, comprometer a massa muscular e, até mesmo, causar compulsão alimentar.
Um estudo na Obesity Research, todavia, avaliou 30 mulheres com sobrepeso e obesidade submetidas a uma dieta de restrição calórica de 3 dias e concluiu que a restrição de calorias na dieta não deixa o metabolismo lento. Quer dizer, a privação de alimentos provoca mudanças hormonais, mas a redução metabólica não é suficiente para impedir a perda de peso. Quanto à perda de massa muscular, cabe lembrar que a degradação proteica é dependente da glicemia, sendo que a hipoglicemia favorece a gliconeogênese (nova formação de glicose a partir de compostos não glicídicos, como aminoácidos, mas também lactato e glicerol). A promoção do déficit calórico, contudo, não conduz à hipoglicemia, pois existem diferentes graus de liberdade ou flexibilização nas dietas, conforme as necessidades dos pacientes. Além disso, a degradação proteica pode ser minimizada pela cetogênese (formação de corpos cetônicos), que utiliza ácidos graxos derivados dos triglicerídeos do tecido adiposo.
Por fim, a alegação de que as dietas restritivas (retirada de um ou mais ingredientes ou alimentos do consumo diário, por exemplo, glúten, lactose, açúcares, entre outros) e o déficit calórico (“coma menos, gaste mais”) causem transtornos alimentares é baseada em estudos frágeis e de baixa confiabilidade. Por exemplo, frequentemente é citado um estudo publicado na British Medical Journal (BMJ) que afirma que a dieta restritiva teria aumentado em 18 vezes o risco de compulsão alimentar. Trata-se, todavia, de um estudo observacional que não pode estabelecer causalidade. Além disso, o estudo avaliou apenas adolescentes do sexo feminino, e não foi implementada uma dieta de baixa caloria, apenas observados os relatos de contagem de calorias, redução da quantidade de alimentos ou omissão de refeições. O estudo também não excluiu as participantes com morbidade psiquiátrica prévia.
Sendo assim, não podemos culpabilizar apenas o déficit calórico, pois são precursores de transtornos alimentares fatores genéticos, socioculturais, psicológicos e psiquiátricos, e comorbidades.
(*) Joelso Peralta é nutricionista, mestre em Ciências Médicas e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Farmacologia e Terapêutica da UFRGS.