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Do que é feito o perdão?

Estela Márcia Rondina Scandola (*) | 18/01/2021 08:17

Perdoar uma atitude ou uma pessoa pela sua obra toda é demais de autoritário. É unilateral e não tem nada a ver com a atitude da outra pessoa ou com ela mesma. Tem a ver com recuperar a saúde mental, exercitar a cura de si mesmo. Se perdôo ou não a outra pessoa ou sua atitude pode significar muito pouco para o destino... Significado tem é para quem toma a atitude do tal do perdão.

 Às vezes ouço gente falando que perdoar é passar uma borracha, é esquecer tudo o que passou... isso pode significar que a pessoa que perdoa e o perdoado simplesmente tiram uma lasca – às vezes enorme, tipo mais da metade da madeira, desconsiderando que outrora foi inteira...

Como esquecer aquilo que doeu tanto ao destinatário, aquilo que se tomou por injustiças, aquele soco que veio no endereço errado do aprontamento... ? Não, não se passa a borracha, não se apaga a história! E mesmo quando se tenta é só uma pele que cobre um buraco ou um apodrecimento que exalará mais prá frente.

O feito e o fazido, como diria o Ricardo tem signos diferentes para quem faz e para quem é feito e fazido o feito. Quem faz pode achar que está educando, sendo verdadeiro,  apostando na própria ideia... agora, o que recebe o fazido ... ah, esse tem outro olhar sobre as violências e as traições...

A traição, sem dúvida é a mais preciosa para o que fez o feito pedir perdão e o que recebeu o fazido perdoar. E as traições são pequenas, médias, grandes, enórmicas... curtas, longas, compridas... às vezes, existentes desde sempre.

Mas a pior traição é quando o traído percebe que o que queria que a outra pessoa fosse o que ela não é! É a traição do que se aparecia, é a traição do que se sonhava... Então, a traição é de ambas as partes. É uma traição começa em si e não no outro.

Imagina a traição de uma parte de uma nação, de um grupo inteiro, de uma cidade... a traição da sua história toda. Traíram a verdade sobre a chegada dos portugueses, espanhóis, holandeses... traíram na captura de homens e mulheres africanos... é muita traição. O Florestan falou que o Caio Prado Jr foi traidor de classe... era da burguesia e fez-se consciência e ação na classe trabalhadora... Caraca! É traição das boas...

Mas tem as traições desgracentas...Traíram chamando a todos de índios como se não fossem nações... e depois chamaram de preguiçosos porque não queriam derrubar as árvores... e foram fazendo a consciência coletiva genocida forjada na traição sobre os povos. Essa é uma tipagem de traição difícil de consertar, perdoar, esquecer... quem pensa que pode são os de cima, como diria Florestan... os de baixo seguem carregando pedaços de mentiras que quase nunca aparecem à flor da pele... a não ser que se rasgue mesmo a pele e faça-se expor as dores... e suas causas!

É cada traição que a gente vive! Do marido que pegou o talão de cheque do trabalho da esposa e usou no motel com outra pessoa; do amigo que, de tão verdadeiro que se achou que usou uma assinatura falsa no cheque e pegou dinheiro no agiota; do partido que, depois de anos de dedicação, não falou nem obrigado e esqueceu de quem saía pegando assinaturas prá sua legalização; da mulher que viveu acolhida na casa da outra e, ao invés de comprar os ovos para o almoço coletivo foi tomar sorvete sozinha com seus deizão... Daquela assembleia que desligaram três gentes grandes dos direitos humanos porque faltaram à reunião e aí conseguiram a maioria prá eleger gentes mais ou menos...

Tem aquela traição de afeto do jovem que você comprou passagem emergencial e pagou quase um mês de salário prá ir na sua formatura e aí, quando teve o racha de grupos nunca lhe perguntou nada, mas foi churrasquear com o outro grupo que nem sabia das entrelinhas da história dele...

Mas tem essa traiçãozona imensa que é a burguesia convencer os tontos da classe média que são amigos... e, na primeira oportunidade, dá um pé na bunda e deixa na banguela... e, pior, os convence que foi falta de sorte ou de deuses...

E o perdão, então?

Então é uma besteira unilateral... melhor mesmo seria se a gente repactuasse o viver. Não esqueçamos nada! Nenhuma traição - nem da ilusão e nem daquilo que chamamos de sacanagem da outra pessoa – merece perdão...!

Talvez a palavra desculpa também seja esquisita.... é tirar a culpa? Qual? Aquela que veio criada com o cristianismo? Cheia de pecado que aprendi desde o catecismo? Não quero des-culpar. Quero reconhecer que tudo o que rolou teve responsabilidades de ambas as partes!

Vou ler mais sobre Gandhi... seria o caso? Ódio aos Senhores? Ódio aos violadores? Ódio aos traidores? É demais de ódio...

Tô lembrada que eu convivia com o Lúdio Coelho sem desconsiderar a traição com a humanidade e com alguns humanos em especial... mas atuava administrativamente com ele, sem ódio. Sabíamos de quais lados nós dois estávamos na greve dos motoristas...

Que palavra usar para tudo isso? Perdonagem - ação de ir vivendo de perdão em perdão? Desculpagem - ação de ir vivendo de des-culpa em des-culpa?

Ai que falta me faz o Osvaldo, Guilherme, Bira e Diogo... podiam me ajudar nisso... Mirane, socorre aí...

Que é que eu faço com essa atitude de não esquecer nada, mas querer conviver com alguém que, de forma incondicional, cuida da pessoa que você tanto tem amado? Não me falem que é resiliência que vou gorfá...

É preciso um nome para isso... mas que não é perdão isso eu sei que não é... Mas uma atitude eu sei: vou olhar todos os dias para sua assinatura sem ódio e sem raiva, mas com o cuidado que o elefante deveria ter tido com o escorpião.

Hoje procurando explicações vi que o Chico César tem a cação que “O amor é um ator revolucionário”... Seria isso?

“O amor é um ato revolucionário


Por estados e religiões temido


Quem pelo amor é pertencido


A si governa e só a ele é confessado


Quem ama ao andar cria sua estrada


Em seu voo vê as planícies prazerosas


E no cume das montanhas alterosas


Toca em gozo a rosa viva imaculada”


 Acho que o amor que o Chico cabelo esquisito fala (como me disse a Sandra) não é romântico, é real...e se aproxima da humanidade profunda... É amor que considera tudo de desgraceira que o outro (pessoa, grupo, instituição, classe) faz ou fez e ainda assim, ama! Como que para irritar o outro lado com sua fortaleza feita de afeto, ama!

É... não achei nome, mas encontrei um caminho muito maior que o tal perdão!


(*) Estela Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada.

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