Eleições nos EUA: entre continuidades e mudanças pontuais para a América Latina
A política externa dos Estados Unidos durante estes anos da administração Trump tem sido positivamente inexistente para a América Latina. Em todos os casos em que ela ocorreu, isso tem acontecido com agendas e iniciativas próximas do punitivo, sendo o Brasil um dos únicos casos em que o governo de Trump incrementou as relações cooperativas, embora, dado o caráter ideologicamente orientado, tais relações privilegiadas não têm significado ganho substantivo reais para o Brasil.
Durante estes anos Trump, a agenda negativa para a América Latina se concentrou em dois pontos: a contenção do fluxo de migrantes para os Estados Unidos através da fronteira com o México, cujo ato mais eloquentes foi o projeto de construção de um imenso muro e a repressão às caravanas de migrantes que saíram de países da América Central em 2019 e 2020 rumo aos Estados Unidos; o segundo aspecto dessa agenda negativa foi o “combate” aos inimigos ideológicos, especialmente aqueles agrupados em regimes de natureza castro-chavista, tais como Cuba, Venezuela, Bolívia e Nicarágua. Com Cuba, ressurgiram as relações tensas e de bloqueios econômicos que precederam aos governos de Obama, enquanto com a Venezuela, além do apoio ao líder opositor Juan Guaidó, iniciou-se um bloqueio e embargo econômico sem precedentes que procura criar condições para colapsar econômica e socialmente aquele país.
Quais são as perspectivas ou cenários possíveis para a América Latina com a permanência de Trump no poder?
Dado que a administração Trump tem uma natureza pouco flexível e pouco pragmática, e é mais guiada por visões fantasmagóricas do mundo (em que se destaca o fantasma chinês, país este pintado e imaginado por Trump e seus assessores como um poço de constante emissão de maldades globais), pouco ou nada deve mudar para a América Latina com sua continuidade. Isso é verdade tanto para aliados (Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Peru e alguns países centro-americanos) como para governos que são enxergados como adversários.
Com os aliados latino-americanos muito provavelmente continuará a prevalecer uma relação fortemente politizada, porém sem oferecer muitas vantagens concretas em termos de mercados, transferência de tecnologia ou de acordos de segurança, uma verdadeira “interdependência assimétrica”, em que a diplomacia dos acordos concretos e vantajosos para ambos os lados continua subordinada ao alinhamento em visões ideológicas e antiglobalistas, especialmente no caso do Brasil.
Já no caso dos países de regimes de (ou perto da) esquerda (especialmente Cuba, México e Venezuela), a estratégia continuará a ser a maximização de sanções econômico-financeiras e diplomáticas, a política de muros físicos para conter a migração e a pressão em organismos regionais, como a OEA. Mesmo no aspecto da segurança, apesar da incursão concreta na região por parte de países como Rússia, China e Irã na última década, a estratégia não passará de políticas dissuasórias sem eficácia, como, por exemplo, ameaçar com a presença maciça da Quarta Frota, que mais serve para reforçar sanções de todo tipo ao eixo de países cubano-bolivarianos do que para desestimular realmente aqueles países asiáticos de desenvolver iniciativas em segurança para a região.
E o que esperar de uma vitória do democrata Biden?
Nesse caso, há que se ter bastante cautela com as expectativas desmedidas que apostam numa forte mudança para as relações com a América Latina. Porém, mudanças, mesmo que pontuais, existirão. Assim, quanto à política migratória, a mudança será no sentido de paralisar a agressiva política dos Estados Unidos que se implementa atualmente na fronteira mexicana, mas sem derrubar os muros físicos que já foram construídos até aqui, procurando instaurar muros mais softs (de natureza virtual), aproveitando-se das tecnologias da internet.
Talvez a mudança mais densa a ser implementada por Biden, caso ganhe a presidência americana, seja em relação a Cuba e Venezuela. Apesar de achar que Raúl, Castro e Maduro são ditadores ilegítimos, Biden e o Partido Democrata muito provavelmente mudarão a abordagem do governo Trump, baseada em sanções unilaterais (comerciais, financeiras , embargos petroleiros e judicialização de lideranças), por uma abordagem de política multilateral abrangente, de pressão internacional, mas estimulando as negociações políticas internas entre governo e oposição.
Sendo o voto latino importante em Estados como Flórida, Califórnia, Arizona e Texas (e os cubanos anticastristas e venezuelanos anti-Maduro são importantes para eventualmente decidir o pleito em Estados como a Flórida), é possível que Biden não descarte também formas intermediárias de enfoque que só atenuam o unilateralismo do governo Trump para atender ao público latino adverso àqueles regimes. A imagem recente da Kamala Harris, vice na chapa de Biden, numa lanchonete de Miami comprando arepas (a mais tradicional das comidas venezuelanas) é significativa para pensar como mudanças mais fortes na política externa dos Estados Unidos para a América Latina podem ser atenuadas e condicionadas de modo a atender às expectativas da clientela eleitoral latina. No final das contas Biden vai querer ser reeleito em 2024.
E o Brasil? Biden mudaria substantivamente a “relação privilegiada” que quase unilateralmente o governo Bolsonaro mantém com os Estados Unidos? Embora Biden não goste muito das queimadas na Amazônia, da política de direitos humanos do governo Bolsonaro e das empatias entre Bolsonaro e Trump sobre a covid-19 (e sobre a cloroquina), será difícil para ele encontrar momento tão singular na história das relações EUA-Brasil como no governo de Bolsonaro e de Ernesto Araújo, no qual, ganhando pouco ou ganhando nada nessa relação, o Brasil sempre parece extremamente satisfeito com o resultado.
Por que Biden iria querer mudar radicalmente a quase “servidão (tão) voluntária” de um país que, até pouco tempo atrás, se comportava como um verdadeiro enfant terrible frente aos Estados Unidos? Mudar a relação com o Brasil nessas condições que tanto favorecem os Estados Unidos não vai ser uma escolha fácil nem politicamente racional para Biden.
(*) Rafael Duarte Villa é professor associado do Departamento de Ciência Política e do Instituto de Relações Internacionais da USP