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“Êxtase”, filme-espelho de um mundo anoréxico

Maurício Ayer (*) | 03/01/2023 13:15

Êxtase, de Moara Passoni, é um filme sobre a criação de um corpo. Não um qualquer, mas o corpo de sua autora, a partir da experiência da anorexia que ela viveu durante sua adolescência. Não é absolutamente claro se se trata de um documentário ou de uma ficção, e tentarei dizer algo sobre isso logo a seguir. Sendo autobiográfico, o filme apresenta o corpo desde logo como um poema, em pleno processo de escrita, e também como poeta, já que o mesmo corpo é, inescapavelmente, artífice e obra dessa invenção.

O filme tenta se colocar, a cada momento, no lugar dessa experiência. Por isso ele é tão estranho, e ao mesmo tempo tão estranhamente familiar. Nada é corriqueiro, pois as imagens são compostas acompanhando o olhar dessa menina, o seu interesse pelo mundo, visitando os lugares onde esse processo, de dor e de autocontrole, foi vivido. Nesse sentido ele é documental, pois os lugares são mesmo aqueles que esse corpo percorreu, assim como os objetos que estão ali pertenceram a esse corpo, mas o corpo mesmo está ausente – ou, quando presente, é pela personagem Clara, que encarna esse destino para nos dar acesso àquilo que só a imaginação vai ser capaz de restituir. É um pouco o que acontece em Noite e neblina (1956), em que Alain Resnais revisita lugares de extrema dor, os campos de concentração nazistas, mas só pode encontrar ali os rastros dos corpos, pois a vivência terrível que ali aconteceu já não pode ser mostrada. E ele vai então restituir isso pela palavra. Êxtase refaz os percursos desse corpo e dá à voz e à música um excepcional poder de abertura, a cada instante. É assim que a imaginação, a ficção, se torna um instrumento a serviço do processo de questionamento do documentário.

Nessa investigação, tal como Moara afirmou em uma entrevista, ela procurou acompanhar a trajetória da pergunta que conduz qualquer discurso sobre si: quem é essa personagem da qual eu falo e que acontece de ser eu? E como essa pergunta, sendo sempre a mesma, se transformou pelos sentidos que seus termos foram adquirindo a cada passo? Em se tratando de uma experiência tão avassaladora como a anorexia, há nela um nó que diz da percepção de si, e que é possível acessar pelo que Marguerite Duras inscreveu no roteiro de Hiroshima mon amour, na voz da personagem Ela, a atriz francesa, quando fala do processo de enlouquecimento que viveu após a perda violenta de um grande amor. Sobre esse estado, ela diz o seguinte: “Sabe, a loucura é como a inteligência. Não dá para explicar. Exatamente como a inteligência. Ela se apodera de você, te preenche, e então você a entende. Mas quando ela te deixa, aí não pode mais entendê-la, absolutamente” (Duras, 1960, p. 58 – tradução minha).

Êxtase mostra que a anorexia é como a “loucura” – ou como a “inteligência”: quando se está na anorexia, tudo faz sentido, mas tudo se perde quando se rompe este estado. Explica-se, ao menos em parte, a incompreensão de quem nunca esteve lá. Uma das motivações da autora em fazer esse filme foi que, justamente, nunca se reconheceu no que lhe diziam sobre a anorexia, e essa incomunicabilidade aprofundava o seu padecimento. Então filmar uma autobiografia do corpo anoréxico só teria sentido se fosse para se aproximar desse lugar estrangeiro, dessa língua misteriosa que a anoréxica expressa com seu corpo apenas por existir nesse limiar. Fazer esse filme, no entanto, tampouco significa assumir um lugar de fala da anoréxica, falar por ela. O filme precisava, ao contrário, inventar um lugar de escuta e acreditar, antes de mais nada, no corpoema: ao invés de “resolvê-lo” em um diagnóstico ou soterrá-lo sob uma enxurrada de preconceitos e equívocos, calar os discursos e se aproximar, entender que, seja lá o que for, esse corpo está, na plenitude de sua autoria, dizendo alguma coisa. Talvez por isso, Moara decidiu abrir-se para a escuta de outras adolescentes e adultas que viveram ou vivem seu processo de recusa do alimento, e incorporou essas experiências na construção da personagem Clara, a heroína do filme, seu duplo.

Moara então procurou acompanhar seu corpo em sua história, mas sem vigiá-lo, deixando-o falar por si. Como no Ulysse de Agnès Varda (1983), no princípio há uma fotografia. Essa fotografia é um documento brutal: vemos uma mulher grávida à frente de um batalhão da polícia montada, ela está ali para proteger trabalhadores em greve. Moara é o bebê que está nessa barriga. Costumamos pensar a vida intrauterina como um estado de beatitude, e o nascimento como uma sofrida queda no real. Mas essa menina, desde a infância, teve que se haver com este fato: a luta política e a ameaça da violência já participavam de sua vida antes mesmo de seu nascimento. O que terá acontecido? O que ela sentiu naquela barriga naquele dia de extrema tensão? A pergunta é sempre a mesma – mas o seu sentido muda.

A imbricação de intimidade e política vai acompanhá-la. Sua mãe se torna deputada federal, e uma das poucas mulheres entre os constituintes que elaboram e votam a Constituição de 1988. A menina sente medo, teme perder a mãe, ao mesmo tempo que admira sua coragem. Ela cria modos de proteger sua mãe das ameaças. É também um modo de se proteger.

Em que momento esse corpo adentra o processo em que ele se torna a própria recusa de si, logo, do mundo, tão radical que conduz a heroína ao limite da morte? Quando confrontada pelos médicos, que lhe dizem “se você não comer, vai morrer”, a resposta dela é um gesto soberbo. Ela não ignora nem desdenha esse fato, nada disso; na verdade, morrer lhe parece indiferente. O que diabos esse corpo diz, se a possibilidade de perder-se totalmente não a ameaça?

São muitos os enigmas do filme, que vai sendo elaborado como um corpus, o inventário dos olhares possíveis para o corpo sobre o qual se fala e, ao mesmo tempo, a obra desse mesmo corpo. Dessa dualidade, diz Jean-Luc Nancy (2000) em Corpus, que eu sou e não sou o meu corpo, ele me constitui e ao mesmo tempo me é estranho. O corpo é o estrangeiro que eu sou. Essa é uma relação vertiginosa.

Porque o corpo é onde começamos a ser outra coisa, onde começamos a nos confundir com o mundo. É nele que nos encontramos e nos perdemos todos os dias. Perdemos sobretudo o controle, pois o corpo é esse pedaço de mundo que somos nós, mas que não deixa de ser mundo. Comemos pedaços de mundo todos os dias, e devolvemos a ele as imundícies que parecem ser tão o oposto de nós mesmos, embora sejam nossa obra mais imediata. Sem solução, Nancy aponta: o que há é uma dança. Viver seria aprender a dançar com o próprio corpo.

Mas o mundo em que vivemos é invasivo, impositivo, violento. São muitos os sistemas de regulação que se impõem sobre os corpos, e a maioria deles opera totalmente na surdina. Às vezes, essa violência se escancara, e a menina sabe disso desde a barriga de sua mãe. E como ela pode dançar neste mundo? Ela também circula pelos corredores de Brasília e o que vê são conversas ao pé do ouvido, de homem pra homem: isso é uma realidade e também uma metáfora. Sua mãe é agredida, seja pelo silêncio, pelo desprezo ou porque sua voz não tem ressonância entre os engravatados, mas ela enfrenta e corre riscos. E a menina inventa o seu corpo nesse meio. Ela grita com seu corpo, e com isso revela muito do mundo que o força constantemente. Resta saber se é possível se defender do mundo, quando nós somos o mundo, pela razão precisa de que somos corpos.

***

Falo de Êxtase com a felicidade de ter participado de momentos cruciais de sua gestação, sobretudo nos primeiros anos do processo de criação do filme. No primeiro instante, quando algo germinou, Moara e eu estávamos juntos, em uma conversa de amigos que há muito não se viam, em um café em São Paulo. Moara trazia todo o manancial do vivido, muita reflexão, profunda e aberta, e uma vontade voraz de travar diálogo com essa experiência. Eu trazia o que que eu tinha aprendido nos livros e filmes de Marguerite Duras. Participei da pesquisa e escrevi junto com a Moara a primeira versão do roteiro.

Um dos paradoxos da autora francesa nos capturou e nos captura até hoje. Duras diz em Le camion: “Que le monde aille à sa perte, c’est la seule politique”. Passaram-se muitos anos e eu ainda tenho dificuldade em traduzir essa frase. Um ponto é a palavra perte, que literalmente seria “perda”, mas num sentido que é estrangeiro em português: a ideia de “perder-se”, um escapar de si mesmo, uma perda não só do controle mas dos próprios limites do ser na direção do desaparecimento. A expressão inteira, “que le monde aille à” nos aproxima de um “que o mundo vá à”, donde uma hipótese de tradução: “que o mundo vá à merda, é a única política”. E olha, de “perte” a “merde”, a diferença é um resfriado. O mundo se perde é por suas imundícies, e no caso do corpo isso se dá, como apontado, pela devoração e excreção do mundo (do qual é parte). O desejo da perda do mundo se dá, portanto, por dois tipos de escatologia: ou a físico-corpórea ou a imaterial-espiritual. Seria este último o que a anoréxica busca? Que, se consumado, alcançaria um êxtase, que se confunde com morrer? E não seria a validação do primeiro tipo de escatologia uma espécie de salvação, na medida em que nos devolve ao nosso corpo?

O filme é lindíssimo, sublime, absolutamente fora de qualquer vulgaridade. Uma criação íntegra, fruto de um artesanato minucioso, longamente cerzido pela Moara, sem nenhum medo de voltar atrás, de desfazer e refazer de outro modo, de desistir de ideias fortes que já não serviam, e de melhorar, aprofundar, ir mais longe, tirar mais força de seus materiais, mais precisão. Contou com muita gente nesse caminho, muitas parcerias, muitos profissionais admiráveis que se apaixonaram por esse filme projetado num futuro indefinido, que afinal chegou. Conduzindo essa caravana esteve sempre a Moara – este filme é também uma parte importante da invenção de sua vida.

Falo de Êxtase também com o privilégio de já ter certo distanciamento do filme e poder admirá-lo sem incorrer no risco do autoelogio. Pois o filme mudou muito desde que eu participava dele, é um filme completamente outro. Ainda que o nó durassiano original permaneça fortíssimo no filme, que muitas ideias do início estejam lá, tanta coisa mudou e tantas camadas foram acrescentadas.

O que aprendi participando e assistindo ao filme da Moara Passoni é que a anorexia é menos uma questão de “padrão de beleza” e mais de “sociedade do controle”. Que a anoréxica dá uma resposta biopolítica a um mundo biopolítico que a invade por todos os poros. Que o corpo anoréxico é um grito, um grito de libertação – fracassado, certamente, mas enraizado num núcleo vital. Que é nesse ponto que talvez se possa inventar um lugar de escuta para ouvir as anoréxicas – e, quem sabe, ajudá-las.

(*)  Maurício Ayer é doutor em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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