Febre da Razão
No livro Ortodoxia, G. K. Chesterton descreve o louco como aquele que perdeu tudo, exceto a Razão. A mesma cultuada como deusa pela Revolução Francesa, momentos antes de cabeças rolarem do cadafalso. A despeito de alguns se escandalizarem com a brutal insanidade dos discípulos de “la Raison”, quem leu (e entendeu) Pascal não se surpreendeu, pois sabe que o Homem não é nem besta nem Anjo, mas que, quando quer ser este, torna-se aquela.
A visível, porém infinita distância entre os dedos de Deus e de Adão, imortalizada no teto da Capela Sistina, recorda-nos de que, entre o Céu e a Terra, há um abismo humanamente intransponível. Não obstante o fracasso narrado no capítulo 11 do Gênesis, já há alguns séculos, o Homem vem tentando reerguer uma nova torre de Babel para alcançar o Céu. Desta vez, não empilhando tijolos, mas através do acúmulo de Conhecimento. Contudo, ao invés da almejada elevação, produziu-se um efeito paradoxal, pois fomos rebaixados a uma única questão, assim expressada por Alberto Camus na linha inicial de seu livro “O mito de Sísifo”: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio”.
Chesterton observou que as Virtudes também adoecem. Com efeito, está doente o amor do pai que, na presença de um grave erro do filho, em vez de corrigi-lo, acoberta-o. Em sua autobiografia, Erwin Chargaff, ao perscrutar o pensamento contemporâneo, diagnosticou o ressurgimento da “febre da Razão”. Este sintoma não lhe passou desapercebido devido a sua formação cultural na Viena do início do século XX. Segundo Chargaff, o Homem foi possuído pelo aforismo “o que pode ser feito, deve ser feito”, que ele apelidou de “doutrina do demônio”. Se fôssemos sábios como nossos ancestrais, humildemente reconheceríamos que há ações irreversíveis, e estas só deveriam ser levadas a termo após profunda reflexão e condicionadas à absoluta necessidade. Sobretudo, não deveríamos nunca brincar com assuntos de vida ou morte.
Ademais, relembra-nos José Ortega y Gasset, a Razão é relativamente recente em termos evolucionários, ou seja, é uma finíssima camada a recobrir nossa natureza bestial, semelhante a um verniz sobre a madeira. É tão translúcida que permite ver, através dela, a fera debater-se contra os grilhões enferrujados que a aprisionam. Qualquer um que já perdeu por alguns minutos a cabeça (metaforicamente) compreende perfeitamente Ortega y Gasset. Portanto, confiar cegamente na Razão, como se nela não houvesse imperfeição, prescindindo da Sabedoria, é uma temeridade. O estulto que assim procede não só expõe sua existência ao risco, mas, lançando mão dos inauditos avanços tecnológicos e científicos, pode imprudentemente ameaçar toda a biosfera.
Não devemos jamais olvidar quão rara e frágil é a vida. Tendo surgido após uma grande explosão, ela, provavelmente, se extinguirá com a colisão de nosso planeta com algum corpo celeste, ou como consequência do “Big Freeze” que congelará o Universo, conforme as recentes evidências cosmológicas. A atemorizante novidade é que, pela primeira vez em mais de 4.2 bilhões de anos, um único ser é capaz de abrir as portas ao Armagedon. Seja pelo barulho ensurdecedor de uma bomba atômica que destruiria o mundo, seja pelo silencioso efeito colateral de “gene drives” que varreriam a vida da face da Terra. Ninguém pode impedir as leis da física de seguirem seu curso natural. Porém, o homo Sapiens pode evitar, ao menos, as duas últimas catástrofes mencionadas. Na escala de tempo geológico, nossa espécie está no estágio embrionário. Seria uma pena voltarmos ao pó, sem antes descobrirmos a resposta para a pergunta: o que é a Vida?
“Senhor, perdoai-os, pois eles sabem o que fazem!” (Karl Krauss)