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Fogo em monumentos. Se a moda pega...

Maurício Cintrão (*) | 30/07/2021 13:00

Um grupo de pessoas queimou a estátua dedicada ao bandeirante Borba Gato, na zona sul de São Paulo, Capital. Os manifestantes são contrários a monumentos que homenageiam traficantes de escravos e matadores de indígenas. Os danos à estrutura foram superficiais. Mas o debate que se seguiu ao fogo foi destruidor.

Cantado como um dos heróis do desbravamento do sertão brasileiro, Borba Gato e seu sogro, Fernão Dias, e outros bandeirantes, são apontados como genocidas pelos historiadores. Teriam matado, violentado sexualmente e/ou escravizado milhares de indígenas e negros, a partir do século XVII.

A exemplo do que vem acontecendo em vários outros países, os grupos de defesa dos direitos indígenas e de afrodescendentes denunciam que essas obras artísticas homenageiam criminosos de guerra. Por isso, precisam ser destruídas ou recolhidas a museus.

A estátua dedicada a Borba Gato foi construída no início dos anos 1960 e fez parte de um processo político que buscava criar um espírito empreendedor dos paulistas. É um monstrumento, dizem.

Um processo semelhante aconteceu em Mato Grosso do Sul, a partir da criação do estado. Forjou-se narrativa de migrantes pioneiros que, com coragem, sacrifício pessoal e determinação, trouxeram desenvolvimento e progresso à região.

Uma reconstrução da história que visou o apagamento dos massacres de indígenas e afrodescendentes no Centro Oeste e forjou uma falsa epopeia de glórias e heróis brancos.

Mato Grosso do Sul tem a segunda maior população indígena do país e não pode se furtar de reparações históricas em relação aos povos originários. Dezenas de líderes indígenas vêm sendo assassinados nos últimos anos em MS, em um processo sistemático que busca barrar sua luta pelo direito à terra.

Fez parte do processo de apagamento, a construção de um discurso que enaltecia os povos originários com nominação de logradouros públicos, criação de estátuas, monumentos e símbolos patrimoniais diversos.

O Parque das Nações Indígenas é um desses casos. Espaço de lazer e turismo para usufruto de população majoritariamente branca, traz indígenas em marcos pontuais: seus seis portões de acesso recebem nomes de etnias: Kaiowá, Guarani, Nhandeva, Guató, Kadiwéu e Terena.

No majestoso Lago, situa-se uma escultura em homenagem aos Guaicurus, os chamados indígenas cavaleiros. Na entrada situada ao lado do Museu de Arte Contemporânea (MARCO), estão os bustos em cobre dedicados a dois líderes indígenas: Marçal Tupã-Y de Souza (assassinado em 25/11/1983) e Marta da Silva Vito Guarani.

Do outro lado, funciona o Museu das Culturas, um espaço mantido pelos Salesianos e que reúne o acervo recolhido pelos religiosos ao longo de décadas de conversão de indígenas no Centro Oeste.

Pois é, mas erraram na mão. Campo Grande também tem seu Borba Gato. É o chamado Monumento ao “Índio” ou Monumento Zarabatana, situado nas proximidades da entrada Guarani e do marco de inauguração do Parque. Como o ícone do bandeirante paulista, a construção é um desrespeito à memória e às culturas dos indígenas de MS.

Criada pelo arquiteto Roberto Montezuma, de Pernambuco, a obra errou na essência: os indígenas de MS não usam zarabatana (lançador de dardos por sopro). As obras teriam sido paralisadas por isso e nunca mais foram retomadas. Até tentaram transformar a zarabatana em um tipiti (artefato para espremer a massa da mandioca). Mas os indígenas da região também não usam tipiti.

E a política laudatória ao indígena fictício, que falseia a igualdade das “raças”, representa na prática, uma agressão aos cerca de 70 mil indígenas que habitam o Mato Grosso do Sul.

Comentava o assunto com um antropólogo por conta da queima do ícone de Borba Gato. E ele ponderou que, se os indígenas descobrirem o desrespeito representado por essa obra, o destino do nosso monstrumento pode ser o mesmo do bandeirante defumado em São Paulo.

E se a moda pega...

Maurício Cintrão é jornalista com especialização em Arte Educação e Cultura Regional.

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