Fome, um problema multidisciplinar
De acordo com o Relatório Anual da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), publicado em junho de 2022, entre 702 e 828 milhões de pessoas enfrentaram a subnutrição no ano de 2021, ou seja, entre 8,9% e 10,5% da população mundial. No Brasil, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, do IBGE, a insegurança alimentar grave esteve presente nos lares de 10,3 milhões de pessoas (4,9% da população), significando a falta de alimentos para todos os moradores, incluindo as crianças. Estudos mais recentes, contudo, já refletem o impacto dos dois anos de crise da covid-19 no agravamento deste quadro. Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) indicam que, em 2021, a Insegurança Alimentar Grave atingia 33,1 milhões de brasileiros.
A principal dificuldade para definirmos a fome reside nesse paradoxo entre a universalidade do fenômeno e a singularidade de suas manifestações. Mas qual a utilidade de uma tal definição? É importante ressaltar que não se trata de um simples exercício da curiosidade intelectual. O entendimento sobre o que é a fome impacta diretamente nas medidas que são adotadas para o seu combate.
Os relatórios anuais da FAO são o melhor exemplo dessa estreita relação entre diagnóstico dos problemas, definição dos conceitos e formulação de políticas públicas de combate à fome. Em 2019, o relatório reconheceu, pela primeira vez, que o objetivo de erradicar a subnutrição em 2030, estabelecido pela própria FAO, em 2015, não seria mais alcançável. Dentre as principais razões apontadas para o avanço da subnutrição, o relatório destacou a crise global causando a contração no crescimento dos países de renda média e dos exportadores de alimentos, conflitos e instabilidades políticas ocasionando migrações ao redor do mundo e as mudanças climáticas, que afetam, inclusive, os sistemas de produção de alimentos e de alimentação.
O diagnóstico acima, por si só, já evidencia a amplitude e a multidisciplinaridade dos fatores determinantes da fome, em suas variadas faces e graus. Desde a fome no sentido mais grave, a falta de acesso a refeições diárias, até a sua relação com a qualidade nutricional do alimento que é produzido, distribuído e consumido e que pode levar tanto a problemas de subnutrição quanto de obesidade. Mais além, o diagnóstico da FAO torna também evidente a ligação direta da fome com o problema das mudanças climáticas.
Para descrever os objetivos alcançados pelas políticas públicas de combate à fome, recorre-se, desde a década de 1970, à noção de “Segurança Alimentar”, que significa acesso a uma alimentação segura, nutritiva e suficiente durante todo o ano para erradicar todas as formas de má-nutrição. A “Insegurança Alimentar” (IA) não se restringe, portanto, à produção e ao consumo de alimentos, mas diz respeito também a todas as etapas das atividades conduzidas nos sistemas agroalimentares, desde a escolha dos insumos utilizados na produção agropecuária, da tecnologia e sistemas de produção até a etapa pós-consumo, da deposição de resíduos e restos de alimentos. A IA está estreitamente relacionada a um conjunto bastante heterogêneo de fenômenos: as desigualdades sociais, as situações sanitárias, as crises econômicas, a instabilidade política, os deslocamentos populacionais, a modificação de hábitos alimentares, assim como a qualidade das instituições democráticas e as mudanças climáticas, entre outros.
Ao trabalhar nos diagnósticos do problema em suas diversas facetas, há que se considerar recortes que, mais uma vez, destacam a complexidade da Insegurança Alimentar. A fome nas áreas rurais do Brasil é um desses recortes, em que, além de passarmos pela discussão dos sistemas de produção prevalecentes, da estrutura agrária propriamente, dos instrumentos de apoio à geração de renda no campo, do necessário acesso mais amplo e democratizado à informação, à assistência técnica e às tecnologias de comunicação, se aprofunda em questões antropológicas. Há muitas espécies de plantas alimentícias, inclusive que valorizam a flora nativa dos diferentes biomas brasileiros, cujo hábito alimentar moderno e urbano levou ao quase desaparecimento da mesa dos consumidores, até mesmo dos rurais. Seu consumo, se retomado e incentivado, poderia contribuir para o melhor atendimento das necessidades nutricionais e a mitigação da fome no campo.
Assim, parece óbvio que para o enfrentamento deste problema, é necessária a união de esforços multi e transdisciplinares, com o trabalho conjunto de especialistas em agricultura, meio ambiente, urbanização, saúde, economia, antropologia, história, engenharia, comportamento alimentar, comunicação e políticas públicas, entre muitos outros.
O Grupo de Trabalho Políticas Públicas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome foi criado pela Reitoria da Universidade de São Paulo, em setembro de 2021. A constituição deste grupo multidisciplinar veio dar continuidade a iniciativas anteriores, como a realização do simpósio USP: Políticas Públicas para o Combate à Fome, ocorrido em 12 de maio de 2021, que resultou em um livro eletrônico com esse mesmo título. Desde setembro de 2021, este grupo de professores, juntamente com pesquisadores de pós-graduação e de pós-doutorado, vem trabalhando com ações concretas, mediante estudos e diagnósticos sobre a situação da alimentação, da insegurança alimentar e do combate à fome que afeta diretamente a população brasileira mais carente, assim como verificando as políticas públicas já existentes neste contexto.
A existência deste grupo de trabalho expressa o compromisso da nossa Universidade em contribuir com os órgãos públicos e com a sociedade civil na proposição de políticas públicas que possam abrir novas perspectivas para mitigar os graves problemas da fome, da subnutrição e da Insegurança Alimentar.
(*) Marcelo Cândido da Silva é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
(*) Margarida Maria Krohling Kunsch é professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
(*) Sílvia Helena Galvão de Miranda é professora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP.