Não adianta querer, tem que ser!
Professor Marcos, licença pra chegar.
Eu, enquanto aluno da disciplina de Antropologia ministrada pela professora doutora Jaqueline Santos, me senti impelido a lhe escrever, após ler seu texto publicado no Jornal da Unicamp, dia 06/12/2022.
Acredito que a inserção de um pensamento marginal na academia é um processo em constante disputa, num movimento que é próprio da história: o desejo revolucionário do avanço e o reacionário da conservação. Dia 30 de novembro celebramos uma conquista histórica: a presença dos Racionais em uma aula (sem aspas, por favor) na Universidade. Dia 6 de dezembro, recebemos sua perspectiva crítica sobre o evento.
Avanço. Conservação. Tá no jogo. É o movimento. Por isso, penso fazer sentido compartilhar minhas palavras.
Acredito que na sua terminologia eu seria caracterizado como um “militante”, embora para minha esposa e filha eu pertença à categoria dos arrivistas (é que, nessas circunstâncias, as muitas noites em que estou ausente de casa para ir à faculdade pesam para elas). Mas não me dirijo a você dessa posição, se é que é possível nos desnudarmos dos postos Aluno vs Professor. Me dirijo ao senhor da posição igual que ocupamos (ao menos temporariamente): espectadores de um marco na história nacional, o dia em que se reivindicou a concessão do título doutor honoris causa aos músicos dos Racionais MC's em uma "Carta de Agenda Antirracista".
Daqui dessa posição, me permito dizer que há dois elementos fundamentais no seu texto: um equívoco e uma escolha política.
Que é a literatura? Não há consenso. Para alguns, é aquilo que somente é essencial ao humano se desprovida de identidade, aquilo que recusa os processos que concorrem para sua diluição na cultura de massas. Certo? Mas, para outros, é uma certa maneira de intervir na partilha do sensível, que define a maneira pela qual o mundo nos é visível[1]. Há ainda quem diga que literatura é aquilo que revela uma verdade soterrada.
Essa literatura ilibada que alguns defendem, desde Flaubert – essa literatura que pressupõe uma igualdade nas palavras, que suprime a hierarquia dos temas –, só é viável para quem se encontra em uma condição de privilégio de classe. Quer dizer, do que é possível falar quando sua condição é de fome, descaso e violência senão sobre a fome, o descaso e a violência?
Essa hierarquização temática não é um ato racional, é uma demanda do estômago.
A defesa de uma produção ideal em abstrato é resultado de uma visão de mundo, a visão de que supostamente seria possível destituir-se de suas condições materiais para exercer uma atividade artística ou intelectual. Nesse mundo idealizado, os Racionais MC’s não deveriam ter seu lugar ao sol no sacrossanto mundo acadêmico. Acontece que tal visão não apenas não corresponde à realidade, como já foi amplamente criticada pelos pares em todas as áreas da ciência.
Os Racionais foram e continuam sendo a expressão política, cultural e de identidade de um país cuja história foi alicerçada no racismo e na violência do Estado. Sua produção artística segue o mantra “a cabeça pensa onde os pés pisam” e, inevitavelmente, carrega a dimensão política e de luta desse país em constante disputa.
O saber que o grupo herda e dissemina é um saber que coloca a dimensão da experiência como um elemento fundamental do aprendizado. Talvez por isso a liturgia encontrada em cultos religiosos seja verificada também quando os jovens presentes na aula aberta se veem frente a frente com seus mestres. Trata-se de um aprendizado com uma forte carga afetiva – não é essa a melhor forma de saber, já defendida por grandes expoentes da intelectualidade brasileira, como Darcy Ribeiro e Paulo Freire? Aliás, é possível compreender a potência do neopentecostalismo sem considerar a referida liturgia dos fiéis?
Utilizar como referência teórica uma perspectiva idealizada de produção cultural para pensar uma obra originada nos escombros do Capão Redondo, na época o bairro mais violento do mundo, é fruto de uma cabeça que pensa por meio de pés que não pisam as ruas do Brasil real.
Projetar uma definição de literatura em dissonância com os pressupostos históricos da obra analisada: eis aqui, no meu entendimento, o seu equívoco.
Manifestar-se de forma a deslegitimar a inserção de um saber marginalizado no cânone acadêmico, no momento de celebração desse feito, e subjugar a relevância dos movimentos de luta – o movimento negro, periférico e estudantil – que produziram tal feito: eis aqui sua escolha política.
Avanço. Conservação.
São, sobretudo, escolhas políticas. O senhor reivindica a fala de Ice Blue, que, no dialeto de quebrada, deu uma “oreiada” nos alunos ao defender que, se por um lado é importante denunciar o preconceito institucional da universidade, por outro é fundamental aproveitar a oportunidade de pertencer a ela. Sim, num país profundamente desigual, estar na universidade pública é um privilégio, mesmo para pessoas negras e periféricas. Mas estar nesse espaço hoje só é possível graças à luta do movimento negro e dos movimentos sociais, nada foi concedido de boa vontade.
A luta pela superação do cânone acadêmico passa pela mesma perspectiva: superar a herança colonial ainda presente nas estruturas sociais.
O senhor reivindicar a fala de Ice Blue para defender a permanência do cânone diz mais sobre você do que sobre nós, alunos, ou sobre o legado dos Racionais MC’s.
A oreiada do Blue nós acatamos com respeito. Sua crítica nós recebemos alertas. Porque nos importa saber as ruas onde os pés pisam para fundamentar as ideias defendidas, e seu texto não deixa margem para dúvidas sobre o lado em que você está na luta pelo avanço ou pela conservação.
O senhor provoca ironicamente “Sejamos Racionais”, a gente responde, diretamente, “Não adianta querer, tem que ser!”.
Quando se refere ao grupo como “nossos rappers”, eu me questiono se o senhor se sente realmente representado por eles ou se, assim como alguns que se referem aos “nossos índios”, “nossos negros” (essa maneira infantilizada e colonialista de se referir a seres humanos), trata-se na verdade de uma representatividade que se é obrigado a engolir, mas que se fosse possível seria negada. As suas aspas, ao contrário do que diz, não estão nos cânones. Em seu texto as aspas são usadas quando se refere à “aula” dada pelos Racionais, como se esse espaço simbólico de quem ensina não pudesse pertencer a quem não cumpriu os ritos de educação formal. Talvez isso sinalize a resposta para a questão anterior.
Daqui do espaço igual que ocupamos por ora, lhe faço uma recomendação, sem cinismo (cinismo nunca, cinismo é o reduto dos covardes): não se sinta constrangido por defender o cânone e não deixe de acreditar no espaço simbólico que ocupa. Nós não renegamos o cânone, queremos apenas recompô-lo de maneira mais plural, como é efetivamente constituída a formação dos múltiplos saberes.
Introduzir na bibliografia acadêmica um saber trazido por jovens negros da favela, sem estudo formal, não implica abstermo-nos de estudar Descartes, Marx, Hegel ou Lévi-Strauss. Implica demarcar que o imenso valor que tais figuras canônicas têm na produção científica não é suficiente para compreender a vida social, em especial no Sul global.
Ademais, significa levar a cabo a ideia de que não é suficiente compreender o mundo, é preciso transformá-lo.
A posição que o senhor ocupa, nas dimensões de classe e simbólica, é desejada por muitos de nós, aspirantes a professores, embora saibamos antecipadamente que poucos chegaremos lá. Mas aprendemos a lidar com isso sobriamente. A vertigem da queda tem sido nossa morada permanente, só surpreende aos desavisados.
Quem demoniza o espaço ocupado pelos educadores no Brasil atual é a extrema-direita, essa que nós, militantes, arrivistas e até mesmo alguns iludidos, combatemos com unhas e dentes. Não nos coloque essa pecha de questionarmos a legitimidade do professor: o que questionamos são alguns pilares da estrutura acadêmica.
Portanto, não há do que se constranger.
Melhor que se colocar nessa posição de constrangimento é colocar-se ao lado certo da luta de classes.
Avanço.
(*) João Paulo Moreto Pimenta é graduando em Antropologia e funcionário público na Unicamp