Novo CPC não cria ‘ditadura do Judiciário’
A proposta de um novo Código de Processo Civil (CPC) aprovada no Congresso (Projeto de Lei 166/10) e, atualmente, em trâmite na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei 8.046/10) tem recebido merecido debate. Confesso não me lembrar de outra legislação que tenha sido tão exaustivamente discutida como esta. Arrisco-me a dizer que nenhum projeto de lei, desde a promulgação da atual Constituição Federal, foi objeto de tamanha participação e grau de politização.
Contudo, não obstante essa recomendada pluralidade no tratamento da novel legislação, não se pode perder de vista que as ponderações devem ter como “limite” o seu próprio objetivo, qual seja: a construção da mais adequada legislação para desenhar o novo CPC. Que isso ocorra dentro dessa diversidade de pensamento é salutar, afinal, como já advertia Machado de Assis, “não é preciso ter as mesmas idéias para dançar a mesma quadrilha”. Todavia, em nosso sentir, não se deve criar obstáculo ao novo, afinal, “devemos construir pontes e não levantar muros”.
Assim, sobretudo a esta altura do processo legislativo, não nos parece prudente lançar óbices com o intuito de inviabilizar a concretização dos trabalhos como se não precisássemos de uma nova legislação processual cível. Nesse sentido, é lamentável insistência daqueles que vão à grande mídia, não para debater, mas para tornar inviável a consecução do Projeto de Lei 8.046/2010. Exemplo bem acabado desse afã é a reportagem da revista Veja do dia 30 de novembro de 2011. Com efeito, os pontos nela tratados nem de longe refletem a o arcabouço ideológico que tem permeado o PL, além de dar uma falsa impressão de desequilíbrio entre os sujeitos da relação processual quando acusa o PL de criar a “ditadura do Judiciário”. Apenas para nos fixarmos numa questão, haja vista o espaço deste ensaio, afirmou-se, naquela edição, que a possibilidade da execução imediata da sentença “confere poder exacerbado ao juiz na condução do processo”.
Sinceramente, essa interpretação não exprime a realidade que está no PL, além de contrariar antigo desejo da mais balizada doutrina. Em verdade, há muito tempo processualistas que detida e meticulosamente estudam o processo civil pátrio, como Luiz Guilherme Marinoni, têm apregoado a necessidade de se permitir a execução imediata da sentença. Em outras palavras, não faz sentido que uma decisão proferida sob o pálio do contraditório e, pois, das garantias constitucionais, seja impedida de produzir efeitos práticos até que o tribunal local se manifeste sobre ela. O que o PL permite é justamente isso. Ou seja: que a sentença possa produzir efeitos no mundo dos fatos ainda que o processo esteja sob análise do tribunal por força de recurso. Contudo, a preocupação com a justiça da decisão levou ao esmero de permitir ao relator, naqueles casos de comprovada necessidade, que impeça que essa sentença produza seus naturais efeitos, aguardando, então, a decisão do órgão colegiado a seu respeito. Se assim o é, como poderia essa técnica processual ser considerada “ditadura do Judiciário”?
Aliás, chega a ser ofensivo acusar o PL de ser prodigioso com o Judiciário em detrimento dos demais poderes, pois, ele cuidou de, justamente, trazer para o seu bojo, as garantias constitucionais do cidadão; dentre elas, a necessidade de se fundamentar a decisão – e, por várias vezes, ressalta isso expressamente. Esse princípio constitucional da necessidade de fundamentar que, por sua índole, poderia inclusive ficar implícito, é reiterado por dez vezes no projeto. O artigo 476 é exemplo claro dessa preocupação. Sua construção é laboriosa. Na Seção II, Dos requisitos e efeitos da sentença, em seu parágrafo único afirma: “Não se considera fundamentada a decisão, sentença ou acórdão que: I – se limita a indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo; II – empregue conceitos jurídicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”. O artigo 11, por sua vez, inserido no Capítulo I – Dos princípios e das garantias fundamentais do processo civil, dispõe: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. Sendo assim, sinceramente, não se consegue compreender em que medida estaria configurada a presumida “ditadura do Judiciário”, se todo o procedimento é revestido da mais ampla garantia constitucional e processual.
O projeto abarcou os temas relevantes: celeridade, efetividade e segurança jurídica, entendida como justiça da decisão, sem descuidar “da igualdade de todos perante o Direito” e do “direito de participação no processo”. Todos os segmentos envolvidos – Defensoria Pública, Advocacia, Magistratura, Ministério Público, Fazenda Pública – foram prestigiados, tendo como fim último o cidadão. Assim, se se reconheceu efetivo poder ao juiz, preocupou-se com a real participação das partes na construção da decisão. Não por outra razão o artigo 10 expressa: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício”. Por outro lado, não se concebe um juiz despido de poder, principalmente à luz de uma Constituição cujo objetivo fundamental é tutelar direitos, evitando a ocorrência do dano (artigo 5º, XXXV da Constituição Federal).
O novo é impactante. No entanto, precisa ser recepcionado com espírito aberto, ávido o suficiente para enterrar a denominada “cegueira utilitária” e não permitir que o “futuro repita o passado”. Afinal, como disse J. W. Jenks, “A entrada para a mente do homem é o que ele aprende, a saída é o que ele realiza. Se sua mente não for alimentada por um fornecimento contínuo de novas idéias, que ele se põe a trabalhar com um propósito, e se não houver uma saída por uma ação, sua mente torna-se estagnada. Tal mente é um perigo para o indivíduo que a possui e inútil para a comunidade”.
(*) Benedito Cerezzo Pereira Filho é advogado do escritório Eduardo Ferrão Advogados Associados e professor de Direito da Universidade de São Paulo