“O Conto da Aia”: 40 anos da distopia de Margaret Atwood
Em 1985, Margaret Eleanor Atwood publicava O Conto da Aia (Handmaid’s Tale) no Canadá, pela Editora McClelland and Stewart – distopia que receberia diversos prêmios literários de relevo internacional nos anos seguintes. Não será por mera coincidência que em março deste ano (2025), a série homônima televisiva levará ao ar a sexta e última temporada da história protagonizada por June Osborne.
Para quem não está familiarizado com o enredo do romance, a elite de Gilead (vasto território localizado em partes dos outrora Estados Unidos) submete um grupo de mulheres à condição de gerar filhos para casais de Comandantes e Esposas. As Aias são coagidas mediante variadas formas de violência: física, emocional e psicológica. Na residência de cada família, encontram-se as Marthas (a dar conta do inesgotável trabalho doméstico) e os Guardiões (que servem especialmente aos mandos e desmandos dos Comandantes).
Como o topônimo sugere, a vida em Gilead é pautada pelas escrituras (o nome do território remete ao Gênesis). Estruturado de modo rigorosamente hierárquico, esse regime patriarcal e fundamentalista conta com a severa cumplicidade das Esposas e a tirânica intervenção das Tias (instrutoras/supervisoras que, aparentemente, ensinam como as Aias devem se portar, ao frequentar tais propriedades) e Olhos (observadores cuja função é reportar desvios de conduta aos Comandantes). Destituídas de sua antiga identificação civil, as Aias são chamadas pelo nome do Comandante a que estão subordinadas. Para citar apenas um exemplo, Offred nomeia uma Aia pertencente a Fred = Of Fred, de Fred.
O que está por detrás dessa história que evoca o período inquisitorial? Como a escritora reconheceu em mais de uma ocasião, o desejo de produzir ficção deve seu tanto a obras literárias que leu e releu desde a infância: O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë (1847); Nós, de Evgéni Zamiátin (1924); Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (1932); O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler (1940); A Revolução dos Bichos e 1984, de George Orwell (publicados respectivamente em 1945 e 1949), entre outros. Graças à coletânea Alvos em Movimento (traduzida e lançada no Brasil em 2023), que reúne vários textos críticos da autora, essas e outras informações estão ao alcance do público leitor interessado.
Comparado às distopias de Huxley e Koestler, Atwood supõe que o romance 1984 lhe “pareceu mais realista, provavelmente porque Winston Smith era mais parecido” com ela – tanto por conta de seus atributos físicos, quanto pelo fato de o protagonista sobreviver “em conflito com as ideias e o estilo de vida proposto para ele” e, dentre outras ações, “escrever seus pensamentos proibidos em um caderno em branco e secreto, deliciosamente tentador”.
De algum modo, as obras de George Orwell acompanharam Margaret Atwood ao longo da vida, pois, ele “passou a ser um modelo direto” para a escritora “no verdadeiro 1984”, ano em que ela começou a redigir o próprio romance, narrado por June. A autora desejava “escrever uma distopia da perspectiva feminina – o mundo segundo Julia, por assim dizer. Mas isso não faz de O Conto da Aia uma ‘distopia feminista’.” A despeito da diferença de enfoque, Atwood ressalta diversos paralelos entre 1984 e O Conto da Aia, tanto por conta dos regimes totalitários, quanto pela perversa utilização da linguagem por reduzidos grupos formados por sujeitos megapoderosos (quase todos hipócritas).
Um dos excertos mais reveladores do drama por vir se encontra no terceiro capítulo da segunda parte (“Compras”). Nele, Offred descreve a parte externa da residência dos Waterford: “O jardim é o domínio da Esposa do Comandante. Olhando para fora por minha janela com vidro inquebrável, com frequência a vejo nele, os joelhos sobre uma almofada, um véu azul atirado sobre as abas largas do chapéu de jardineiro, uma cesta ao lado com podadeiras e pedaços de barbante para amarrar as flores no lugar. Um Guardião destacado para servir o Comandante faz o trabalho pesado de cavar, a Esposa do Comandante dá instruções, apontando com sua bengala”.
Afora a simbologia das cores (Aias usam vermelho; Esposas vestem azul), o fato de as Esposas manterem as “flores no lugar” parece aludir à condição das próprias Aias, cuja indumentária (em branco e vermelho) leva a protagonista a associá-las a tulipas. Dentro ou fora da residência dos Waterford, o clima é de opressão quase absoluta. Na ausência do Comandante – que passa a maior parte do tempo fora de casa devido a compromissos políticos –, o regime doutrinário de Gilead repercute com desmedida violência sob a batuta de Serena Joy.
A questão é que, antes mesmo de integrarem a casa de uma família, as Aias passam maus bocados no Centro Raquel e Lia, liderado com mãos de ferro pela Tia Lydia. Após o “treinamento” das Aias, a residência para onde elas são levadas se revela como um ambiente igualmente inóspito, onde as Esposas reproduzem o autoritarismo de seus maridos. Nem mesmo as saídas diárias para fazer compras oferecem maior sensação de liberdade, pois as Aias percorrem o trajeto em duplas, de maneira que uma vigie as palavras, os gestos e as atitudes da outra.
Por esses e outros motivos, O Conto da Aia ultrapassa em muito o que se espera da chamada “literatura de entretenimento”. Como sugere a autora, trata-se de uma “ficção especulativa” que estimula a reflexão e, em certa medida, alerta-nos sobre a propagação de pseudoargumentos extremistas empunhados por homens e mulheres de suposta boa-fé. Feito o lembrete, suspendo a palavra e reforço o convite para que os leitores experienciem a poderosa distopia de Margaret Atwood.
(*) Por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP
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