Novos ataques aos direitos das pessoas que sofrem violência sexual
“Criança não é mãe” é um slogan para tentar enfrentar mais um grande ataque aos direitos humanos no Brasil, aquele que agora quer impedir o acesso ao aborto legal e ainda criminalizar o que hoje é um direito.
Uma criança não deveria ser obrigada a ser mãe. Esse é o ponto.
No dia 12 de junho, o deputado Arthur Lira conseguiu aprovar em manobra rapidíssima o requerimento de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, conhecido como PL da Gravidez Infantil. Esse projeto propõe que seja criminalizada a interrupção da gravidez quando acima de 22 semanas, equiparando o procedimento a um homicídio.
Uma gravidez que precisa ser interrompida assim tardiamente refere-se a situações que acontecem especialmente com crianças e adolescentes que foram abusadas, porque podem demorar para entender o resultado do abuso e descobrir a gravidez, já que muitas vezes ainda nem tinham tido sua primeira menstruação.
Elas podem morar longe de hospitais e serviços de saúde, não ter renda nem autonomia para chegar ao serviço de saúde – só cerca de 3% dos municípios têm serviço de aborto legal no sistema público. Destaque: são ainda crianças.
Há uma campanha para reagir a isso, lembrando: criança não é mãe.
O aborto legal no Brasil só é permitido se resultado de estupro, risco de vida para a pessoa gestante — nestes dois casos, a lei é de 1940 — ou se provada anencefalia fetal. Esses casos de gestações mais avançadas normalmente se enquadram nos dois primeiros casos, tanto resultado de estupro quanto risco de vida para a gestante, pois normalmente quem sofre esse tipo de agressão sexual é menor de 14 anos.
Não há limite de tempo prescrito nesses casos para fazer o aborto, mas o que existe é a previsão de que não seja criminalizado. E é isso que esse PL quer reverter, como lembra a ministra da Mulher, Cida Gonçalves.
A maior parte das agressões sexuais no Brasil – entre 70 e 80%, a depender da pesquisa – acontece contra meninas e adolescentes, especialmente cometida por parentes e pessoas conhecidas ou que coabitam, muitas vezes de modo repetitivo ao longo dos anos, aumentando a chance de o abuso levar à gravidez. São crianças que podem ser abusadas por anos a fio e que muitas vezes jamais denunciam, pois o agressor é um parente.
Os dados do Fórum de Segurança Pública revelam que foram registrados no sistema policial em 2022 cerca de 75 mil casos de estupro. Considerando que apenas cerca de 10% dos casos são denunciados à polícia, estima-se um número muito maior desse tipo de crime. São inúmeras as pesquisas no campo da saúde e da segurança pública que apontam que a maioria das vítimas são crianças ou adolescentes menores de 14 anos, consideradas vulneráveis diante da lei. Elas teriam direito ao aborto porque foram estupradas, e também porque levar a termo a gestação as coloca em risco de vida. A gravidez é um risco, e o aborto as protegeria.
Recentemente, outros ataques aos diretos reprodutivos vieram inicialmente de dois lados: a Prefeitura de São Paulo interrompendo os serviços de aborto legal de referência do Hospital Vila Nova Cachoeirinha, e o Conselho Federal de Medicina que baixou uma normativa afirmando que médicos não deveriam fazer abortos em gestações acima de 22 semanas pelo método da assistolia fetal (aquele que é recomendando pela Organização Mundial da Saúde). Essas situações são muito graves, pois o hospital de Vila Nova Cachoeirinha é um dos poucos de referência para esses casos, e um dos raros locais no País que fazia essa interrupção em estágios mais avançados da gravidez. A decisão do prefeito gerou a atuação do Ministério Público obrigando a volta do serviço.
O caso do Conselho de Medicina é ainda mais aterrador. O conselho não só fez uma resolução desastrosa, como perseguiu inclusive profissionais que atuaram dentro da lei para atender jovens que tinham direito ao aborto. O Superior Tribunal Federal suspendeu por liminar a decisão do Conselho Federal de Medicina, exatamente porque ela conflitava com a legislação vigente.
Mas agora um novo ataque a esse direito: um projeto de lei construído por uma bancada conservadora que prevê penas de homicídio para quem fizer esse aborto tardio. O projeto ignora completamente quais são as situações reais em que isso acontece. Os defensores da família e dos costumes estão atacando, novamente, o direito das meninas e adolescentes em situação de vulnerabilidade, a maior parte delas, meninas negras.
Fico pensando: por que será que a vida de um feto vale sempre mais que a vida de uma criança pobre para políticos conservadores? São as pessoas mais pobres, negras e vulneráveis, e que por vezes demoram a ter acesso ao serviço de saúde, que serão efetivamente afetadas por esse imenso retrocesso.
O Brasil é reconhecidamente um país machista e desigual. As desigualdades de gênero e raça são visíveis e notáveis. A violência contra mulheres e pessoas que gestam pode ser promovida inclusive por órgãos que deveriam cumprir a lei ou legislar em nome de avanços importantes no campo dos Direitos Humanos, mas invertem os sentidos.
Tais políticos conservadores apelam à ideia de defesa da vida para atacar os direitos das pessoas mais vulneráveis. Parece que essa votação sumária, sem contagem de votos e de modo sub-reptício, foi feita para que Arthur Lira mostre seu poder e o poder de um congresso conservador.
Novamente, vamos depender do STF e de outros órgãos do Judiciário para tentar barrar esse descalabro, mas com muito temor de só vermos retrocesso.
Fico pensando: quais são as vidas que contam?
(*) Heloísa Buarque de Almeida é professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
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