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O apoio dos EUA sobre patentes é bom, mas não suficiente

Calixto Salomão Filho e Carlos Portugal Gouvêa | 20/05/2021 13:09

Arepresentante dos Estados Unidos para o Comércio, Katherine Tai, anunciou em 5 de maio de 2021 que o governo Joe Biden apoiaria a proposta para restringir as proteções patentárias das vacinas contra a covid-19, inicialmente apresentada pela África do Sul e pela Índia na Organização Mundial do Comércio (OMC). A notícia é positiva e histórica, ao reconhecer tais patentes como bem comum da humanidade, e demonstra uma inflexão pontual na política norte-americana de defesa inabalável de direitos de propriedade industrial.

No entanto, a mudança de postura dos Estados Unidos é apenas um primeiro passo para a democratização real do acesso à vacina. É necessário, ainda, que a proposta agora apoiada pelos Estados Unidos seja aceita pela OMC, o que deve ser um processo longo, uma vez que órgãos multilaterais sem poder mandatório privilegiam a adoção de medidas por consenso. Se o consenso não for possível, a proposta precisará de apoio de 2/3 dos países-membros da OMC. Além disso, é importante que desde já os países se mobilizem para permitir o licenciamento e levá-lo a cabo internamente, uma vez que eventual aprovação do plano pela OMC não teria aplicação direta.

Isso pode ser feito tanto pela via legislativa como por meio de litígios estratégicos em países que já dispõem da tecnologia para produção das vacinas. A Índia, a África do Sul e o Brasil estariam entre esses países que teriam capacidade de produção local das vacinas. Mas para que a produção das vacinas seja possível em tempo hábil para reduzir efetivamente o avanço da pandemia, particularmente nos países mais pobres, é necessária uma mobilização global da sociedade civil para pressionar os governos locais para já se prepararem para a produção dos imunizantes.

É importante a ampliação da pressão sobre governos de países ricos e pobres. A racionalidade da decisão do governo norte-americano está em reconhecer que vivemos num mundo economicamente conectado e que a progressão da covid-19 em países que hoje sofrem com escassez de vacinas ampliará a desigualdade e a pobreza no mundo, afetando desproporcionalmente os países mais pobres, mas também as economias dos países ricos. É o reconhecimento do óbvio: não existem vencedores em uma pandemia.

Ainda que o próprio comunicado emitido por Tai reforce o compromisso dos EUA com as patentes em geral, a manutenção de uma defesa da indústria farmacêutica nacional nesse momento poderia ter impactos econômicos no restante do mundo e, por consequência, também na economia dos países mais ricos. Além de atender ao imperativo moral de facilitar o acesso à vacina, portanto, a decisão também deveria ser seguida por todas as nações ricas, particularmente as europeias. Os países europeus já tiveram seu histórico de sofrimento em razão de políticas isolacionistas e deveriam agora reconhecer a urgência de se pensar em uma solução capaz de entregar o maior número de vacinas o mais rápido possível ao maior número de pessoas em todo o mundo.

No caso brasileiro, a oposição à proposta da Índia e África do Sul é incompreensível. O Brasil é um dos países mais afetados pela pandemia e um dos que mais se beneficiariam da ampliação da oferta global dos imunizantes. Por outro lado, não temos sequer patentes farmacêuticas de origem nacional para justificar uma proteção da indústria farmacêutica. De tal forma, a posição brasileira também se torna insustentável após a mudança na política dos Estados Unidos da América e precisa ser alterada urgentemente.

O Grupo Direito e Pobreza, de pesquisa e extensão da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, publicou recentemente relatório sobre acesso a vacinas contra covid-19 e os fundamentos para possíveis iniciativas de licenciamento de patentes por via judicial. O grupo identificou que o principal problema hoje para produção em massa de imunizantes baseados em RNA mensageiro é o conjunto formado pela proteção patentária das vacinas e pelos segredos de negócio em torno do know-how para sua produção. Além disso, encontrou evidências sólidas de que as vacinas baseadas nessa tecnologia apresentam vantagens significativas para produção em escala, tendo melhores condições de suprir a demanda global.

O relatório também demonstrou a disparidade imensa entre a distribuição de doses no Norte global e no Sul, e apontou um cenário de atrasos no cumprimento de contratos para distribuição de doses. A partir de um levantamento próprio, o grupo demonstrou que todas as vacinas que avançaram no estágio de testes clínicos receberam valores expressivos de financiamento público, oferecendo robusta evidência empírica para a tese de que, sem o papel ativo dos Estados, as farmacêuticas dificilmente teriam conseguido desenvolver os imunizantes que hoje são protegidos pelas patentes.

O relatório também analisou possíveis alternativas jurídicas para o licenciamento e reforçou a importância de que sejam repassados aos países do Sul global não apenas os direitos de produção, mas também o know-how para produção de vacinas de RNA mensageiro. Para demonstrar o número de pessoas que poderiam ser salvas se não existissem as restrições trazidas pelos exclusivos patentários, o grupo utilizou um modelo estatístico desenvolvido a partir de estudos britânicos e em parceria com uma consultoria especializada. Nos três cenários apresentados, o modelo indica que a disponibilização de doses poderia salvar, em média, mais de mil vidas por dia no Brasil até a imunização completa da população.

O relatório está disponível no site do grupo e pode ser acessado diretamente pelo link: https://bityli.com/cesxN. O debate na OMC pode demorar mais algum tempo. É um tempo precioso para salvar vidas e é fundamental que a sociedade civil se mobilize para criar as condições para a produção imediata de vacinas por meio legislativo ou judicial, no Brasil e em todos os países em desenvolvimento. Esperamos que o relatório do Grupo Direito e Pobreza possa contribuir com tal esforço.

(*) Calixto Salomão Filho e Carlos Portugal Gouvêa são professores da Faculdade de Direito da USP.

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