O brinco do gado brasileiro
No Brasil de 20 anos atrás, boi de brinco poderia ser apenas personagem de ficção de filme infantil dos estúdios de Walt Disney. Hoje em dia, bois e vacas usam o brinco que simboliza controle e qualidade do rebanho nacional, uma garantia de segurança.
Esse sistema foi importado da Europa no fim dos anos 1990, quando surgiram suspeitas de que a doença da "vaca louca", responsável por inúmeros danos na Inglaterra, poderia atingir outros países. Com o tempo, ficou claro que a sadia fórmula brasileira de criar bois no pasto, com alimentação natural, já seria o antídoto contra o mal que dizimou rebanhos ingleses e fez vítimas fatais entre os consumidores europeus de carne.
Mas os debates ocorridos em Brasília há exatamente 17 anos, entre representantes do governo federal e da iniciativa privada, levaram à conclusão de que a rígida identificação de cada cabeça de gado por meio de brincos e de informática daria mais segurança também ao combate à febre aftosa e outras doenças. Além disso, o Brasil ampliaria sua credibilidade para a conquista de novos mercados de carne bovina na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos. Não por acaso, um ano depois disso, quase a metade do território brasileiro foi declarada livre da febre aftosa na OIE (Organização Mundial de Saúde Animal), em Paris, abrindo caminho para que o Brasil chegasse à atual situação de maior exportador de carne e derivados do mundo.
Na atualidade, funciona muito bem, por parte do Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) e dos fazendeiros, a forma de identificação de animais junto ao Sisbov (Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Bovinos e Bubalinos). Trata-se de um brinco inviolável para ser colocado na ponta da orelha de cada bovino, com a sigla do país e números que identificam o estado, o município, o criador e o animal, além de um código de barra para controle por computador, a exemplo do que também fazem a França, a Holanda, a Alemanha, a Inglaterra e outros países. Portanto, o brinco tem sido fundamental para que o animal, desde a condição de bezerro até o abate, tenha suas reais condições de saúde expostas, inclusive quanto à vacinação contra a aftosa.
Desde o ano 2000, o governo impõe tal modelo para todos os estados da União. O sistema original, porém, passou por mudanças. Em 2006, por exemplo, a Instrução Normativa nº 17 do Mapa já previa a marca de fogo junto a um brinco auricular como uma das formas de identificação, assim como o brinco auricular numa orelha e um brinco botão na outra orelha. Neste ano, ocorreu mais uma alteração: em 13 de abril, o Mapa oficializou portaria, por meio da Secretaria de Defesa Agropecuária, abrindo a possibilidade de o número de manejo Sisbov também ser marcado a ferro quente numa das pernas traseiras do animal. A mudança foi bem aceita por grande parte dos produtores rurais e das indústrias frigoríficas, mas há quem veja no primitivo sistema de marca a fogo uma tortura desnecessária do bovino. O brinco, por sua vez, é uma unanimidade nacional. Veio para ficar.
Como jornalista especializado em vários assuntos, entre os quais a agropecuária, tive a oportunidade de fazer a cobertura de uma histórica reunião, em 14 de julho de 1999, na sede da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), para o Suplemento Agrícola do jornal O Estado de S. Paulo. Na ocasião, houve um encontro entre o então diretor do Departamento de Defesa Animal do Ministério da Agricultura, Hamilton Ricardo Farias, e o presidente do Fórum Nacional Permanente da Pecuária de Corte, o pecuarista goiano Antenor Nogueira, além de representantes de governos de vários estados. A conclusão geral foi de que havia chegado mesmo a hora de implantar o brinco por meio do Sisbov.
O governo Fernando Henrique Cardoso, encerrando um período de seguidas trocas de ministros da Agricultura, anunciaria para a pasta, cinco dias depois, Marcus Vinicius Pratini de Moraes, que ficaria no cargo de 19 de julho de 1999 a 1º de janeiro de 2003, impondo estabilidade ao setor. Seus antecessores, no primeiro mandato de FHC, tiveram passagens rápidas pelo prédio de um dos mais importantes ministérios do Brasil: José Eduardo de Andrade Vieira (1 ano e 4 meses), Arlindo Porto (1 ano e 11 meses) e Francisco Turra (1 ano e 3 meses), além de três interinos.
Minha cobertura da reunião na CNA saiu numa página inteira do Suplemento Agrícola do Estado, jornal em que trabalhei -- em várias seções -- por 37 anos. Título da reportagem: "Boi pode usar brinco para controle da aftosa". A matéria foi ilustrada pelo desenho artístico de um boi, tendo à orelha um brinco do tipo do usado, na época, na Holanda.
E hoje compartilho com os leitores as lembranças de um debate em que o avanço da tecnologia começava a ser assimilado pelo Brasil em benefício da pecuária, da indústria da carne e da economia nacional. Algo que foi além dos planos: tornou-se uma grata realidade, atravessando os governos FHC, Lula, Dilma Rousseff e o interino Michel Temer. Acima dos partidos e das polêmicas entre políticos, a pecuária de corte e a indústria da carne seguem garantindo dólares e elevado conceito pelo mundo inteiro.
*Luiz Carlos Ramos é jornalista colaborador da CarneTec