O legado de grandes biólogos conservacionistas: Edward Wilson e Thomas Lovejoy
Na época do Natal de 2021, o mundo perdeu dois grandes defensores da vida no planeta, Edward O. Wilson (1929-2021) e Thomas E. Lovejoy (1941- 2021). Eles tinham muita coisa em comum. Ambos foram consagrados como pioneiros na visão do que hoje chamamos biodiversidade. Os dois cientistas atuaram incansavelmente para a preservação da vida no planeta, cada um ao seu modo. O resultado foi que as suas contribuições subsidiaram os critérios que hoje usamos para conservação biológica.
Tanto Wilson como Lovejoy concluíram com suas pesquisas que áreas maiores conservavam maior número de espécies animais. Daí decorre que quanto maiores as áreas que conservarmos, maior será o número de espécies que continuarão existindo. Se agora combinarmos essas ideias de conservação e tamanho das áreas com a necessidade de sequestro de carbono e as influências que hoje sabemos existir das florestas sobre o clima, podemos concluir que a biodiversidade é um dos pilares da vida na Terra. Ambos os cientistas trabalharam ativamente na conscientização da Humanidade sobre o momento crucial que estamos vivendo no planeta, e da importância da conservação dos recursos naturais.
Deixam um enorme legado, tanto na Academia como na difusão do conhecimento, na educação e nas políticas públicas. Wilson deixou inúmeros livros que vêm influenciando gerações e Lovejoy foi ajudou a formar alguns dos pilares do ativismo ambiental, como a WWF (World Wide Fund).
Os dois biólogos serão sempre lembrados e respeitados pelo exemplo e pela contribuição extraordinária para a manutenção da diversidade biológica, que eles chamaram de biodiversidade.
Edward Wilson
Foram muitas as contribuições científicas de Edward Wilson durante sua longa carreira, através de um olhar evolutivo, para compreender o funcionamento da vida na Terra. Estudou principalmente as formigas, incluindo o comportamento social. Sua primeira síntese sobre os insetos sociais foi o excelente livro de 1971, Insect Societies, que ainda não foi suplantado na sua abrangência. No último capítulo, propôs a teoria da Sociobiologia, a partir da sua experiência e do conhecimento das novas fronteiras dos estudos de campo com vertebrados sociais. Foi uma teoria unificadora das bases biológicas do comportamento social, proposta com detalhes em 1975, no livro Sociobiology, the new synthesis, que despertou muito interesse.
Nas suas inúmeras publicações, tratou da natureza humana, da biodiversidade, da conservação biológica, da consiliência, a unidade do conhecimento. Wilson defendeu que, ao estudarmos a biologia por todos os ângulos possíveis, nos aproximamos da confirmação de que a biologia está atrelada às leis da física. Também trouxe à luz a discussão sobre a aproximação das humanidades com as ciências biológicas, que ficou mais evidente no Antropoceno.
Desde sua publicação com Mac Arthur, em 1967, do trabalho clássico sobre a biogeografia de ilhas, tratou continuamente da importância de preservarmos a biodiversidade da Terra, ampliando a base de conhecimento sobre a distribuição das espécies de plantas, animais e microrganismos em áreas de diferentes tamanhos. Os livros Biodiversidade, A conquista Social da Terra e Metade da Terra, o planeta luta pela vida, foram alguns dos marcos deste autor consagrado, que subsidiam as atividades da conservação ambiental, com versão em português. Além deles, destacamos a Enciclopédia da Vida (em inglês), com seus sete volumes, um moderno material de educação on line, como muito importante para disseminar o conhecimento sobre a biologia, a biodiversidade, os mecanismos eco-sociais.
Wilson e sua extensa produção científica foram a base de muitos cursos do Instituto de Biociências da USP, desde os anos de 1970. Muito didático, a sua presença nos vídeos curtos para ciência nos volumes da Enciclopédia da Vida nos agrada sempre, mostra a sua satisfação de ensinar.
Nos últimos anos, dedicou-se também ao projeto Half Earth, cuja página pode ser visitada em half-earthproject.org. Suas considerações públicas recentes foram em novembro de 2021 na reunião Half Earth Day, que reuniu pensadores e pesquisadores importantes da atualidade para tratar de conservação da biodiversidade e seus desafios atuais.
Influenciou significativamente a biologia brasileira. Publicou cerca de 450 trabalhos científicos e 30 livros, muitos deles traduzidos para o português e utilizados pelo grande público e por estudiosos. Incansável e extraordinário, será sempre uma inspiração para todos nós.
Trechos do livro de Edward Wilson, Life on Earth Unit 1:
“Um aluno vê um prado, floresta ou lago, iluminado pelo sol. Um biólogo vê uma cena completamente diferente, iluminada pelo conhecimento: o conhecimento das espécies, interações ecológicas, sociedades microscópicas e fluxos ocultos de energia – de química e física, órgãos, apetites e comportamentos. Por meio do estudo da evolução, o biólogo vê a longa história de como surgiu a cena viva.”
“Aprendendo a ver o mundo da forma como os naturalistas e biólogos o veem, os alunos podem desfrutar de seu planeta ainda mais. Sua valorização pela imensa biodiversidade que sustenta a vida irá equipá-los para tomar melhores decisões quando for sua vez de cuidar do planeta vivo.”
“Este é o século da biologia “. “Novas descobertas na ciência molecular e biológica estão transformando a maneira como vivemos, mas este também é um momento de urgência. Com o crescimento das populações humanas, transformamos a superfície do planeta e agora enfrentamos desafios como nunca antes. Nossa compreensão moderna da ecologia nos ensina que os humanos causaram a perda catastrófica contínua da vida selvagem não por usarem armadilhas, mas por invadir seus habitats e não lhes deixar nenhum lugar para viver. Conforme os habitats encolhem, a biodiversidade entra em colapso e o ecossistema todo falha.”
Thomas Lovejoy
Thomas Lovejoy foi um hábil comunicador. Seu discurso, que incluía problemas e soluções, era sempre baseado na Ciência, na biodiversidade e mais recentemente nas ameaças trazidas pelas alterações do clima. Tratava a todos com muita gentileza e era um ouvinte atento. Um de seus legados principais é a criação do termo “diversidade biológica” que posteriormente acabou se transformando no termo biodiversidade. Trabalhou no mesmo campo da conservação biológica imprimindo um estilo próprio.
Lovejoy foi um apaixonado estudioso da Amazônia, desde 1965, onde doutorou-se estudando aves. A entrevista que deu à Revista Fapesp em 2015 conta muito de suas atividades no Brasil e no mundo, de modo mais detalhado. Lovejoy acompanhou os experimentos do pesquisador brasileiro Eneas Salati, no INPA, na década de 70, que demonstrou que a Amazônia produzia metade de sua própria chuva. “A umidade que inicialmente vem do Atlântico se recicla cerca de 5 vezes no seu caminho a Oeste até chegar aos Andes. Lá, a massa de ar sobe, se esfria e libera grande quantidade de chuva, que abastece 20% da água doce do mundo, que é o sistema fluvial do Rio Amazonas” (falava dos rios voadores). (DW em destaque, 12/08/2019).
Lovejoy participou ativamente de pesquisas em florestas tropicais, tendo desenvolvido o projeto de fragmentação de áreas na Amazônia, que tinha como objetivo verificar como a fragmentação afetava as aves, mamíferos, insetos e árvores, tendo estudado fragmentos de um a 100 hectares, com repetições. Verificou que mesmo fragmentos de 100 hectares perdem metade das aves do interior da floresta em menos de 15 anos, e considerava esse estudo como um destaque entre suas 600 publicações. O projeto evoluiu para o que conhecemos como PPG7, que é um programa piloto para proteção de florestas tropicais.
Também repercute o seu interesse até recentemente nas ações em prol do clima e biodiversidade, tratando de qual será o impacto das mudanças globais sobre a biodiversidade.
Atuando em muitas instituições governamentais, não governamentais e acadêmicas, ampliou o seu discurso sobre a importância da floresta tropical e da conservação biológica. Suas atividades na Smithsonian Institution, no Banco Mundial e nas Nações Unidas, foram impactantes também. Recebeu prêmios e condecorações importantes, mas antes de tudo era um conciliador e estimulava a conservação das áreas naturais, única maneira da sobrevivência humana no futuro.
Teve muitos colaboradores no Brasil. Foi amigo pessoal de Paulo Nogueira Neto, com quem tinha muitas afinidades. Com Carlos Nobre, enfatizou recentemente os perigos do não retorno da floresta após um certo patamar de destruição da Amazônia.
Frases de Thomas Lovejoy:
“A Amazônia era um mundo inacreditável, era como se eu tivesse morrido e chegado ao paraíso”
“A conservação às vezes é percebida como bloqueio de tudo. Cabe à Ciência difundir o entendimento de que a escolha não é entre lugares selvagens ou pessoas. Em vez disso, é entre uma existência rica ou empobrecida para o homem”.
“A lição para a humanidade é não temer a natureza que nos mantém e de onde viemos, mas sim restaurá-la, abraçá-la e entender como viver e se beneficiar dela”
“Minha esperança é que tudo possa ser melhorado por meio de um bom diálogo entre as nações. A questão realmente infeliz é que após sediar a Cúpula da Terra (Eco 92) em 1992, o Brasil foi líder global em meio ambiente por anos, isso quase tornou parte da marca do Brasil. Espero que tanto o Brasil como os Estados Unidos retornem logo esse tipo de liderança”.
Seja produzindo ciência, seja participando da conscientização da população ou influenciando o direcionamento de políticas públicas, os dois biólogos estão entre as figuras chave que transformaram a ética socioambiental do século 20. Edward Wilson e Thomas Lovejoy, assim como personagens brasileiros como Paulo Nogueira Neto, mudaram a forma do mundo ver e pensar os seres vivos. Fizeram parte de um grupo de pensadores que mudou o mundo para melhor, elevando o status e fazendo brilhar a importância da vida como um todo.
Seguindo a máxima de Wilson de que a biologia é a ciência do século XXI, é fundamental que o Brasil, detentor da maior biodiversidade do planeta, se posicione de forma proativa, liderando o caminho da conservação da vida em nosso planeta.
(*)Marcos Buckeridge é diretor do Instituto de Biociências da USP, e Vera Imperatriz Fonseca é professora do Instituto de Biociências da USP